Os astrónomos mandarins

Os missionários jesuítas partiram para a China no século XVI e tornaram-se uma ajuda preciosa para o desenvolvimento da ciência astronómica da civilização oriental 

«NA HISTÓRIA do encontro entre civilizações - escreve Joseph Needham na sua monumental Science and Civilization in China - não parece haver nada de comparável à chegada à China, no século XVII, de um grupo de europeus tão inspirados por fervor religioso como o foram os jesuítas e, ao mesmo tempo, tão versados nas ciências que se tinham desenvolvido com a Renascença e a ascensão do capitalismo».

À frente desses missionários europeus, muitos dos quais portugueses, foi colocado Matteo Ricci (1552-1610), um jesuíta de origem italiana, nascido em Macerata, no centro da Itália, numa família nobre. Ricci era discípulo de Cristóvão Clavius (1538-1612), o responsável pela reforma do calendário moderno e o mais importante matemático e astrónomo do seu tempo.

São Francisco Xavier tinha morrido em 1552 na pequena ilha de Sanchoão junto à costa chinesa, à vista do grande país que tanto ambicionara evangelizar. Quando Ricci chegou ao Oriente, em 1582, após uma longa viagem iniciada em Lisboa a bordo de uma das caravelas que anualmente daí partiam, a China estava ainda fechada aos estrangeiros. Os missionários pararam no entreposto de Macau e começaram a estudar a língua e os costumes locais, estabelecendo contactos com os nobres e intelectuais chineses. No ano seguinte, Ricci foi autorizado a estabelecer-se na província de Quangtung. Em 1589, tornou-se amigo de vários estudiosos confucionistas e ensinou-lhes matemática, astronomia e geografia. Em Janeiro de 1601, conseguiu estabelecer-se em Pequim, onde publicou vários livros em chinês, nomeadamente os Seis Primeiros Livros de Euclides. Seguindo o caminho aberto por Ricci, muitos missionários jesuítas vieram para Pequim e tornaram-se conhecidos dos académicos chineses, que os respeitavam pelos seus conhecimentos de astronomia, geografia, cartografia e matemática.

O segredo do sucesso destes missionários, que vieram a conseguir que o imperador da China promulgasse, em 1692, o decreto de liberdade religiosa, está na sua atitude de respeito pelos costumes locais - vestiam-se e comportavam-se como chineses, estudavam a doutrina de Confúcio e conheciam a literatura e filosofia do Oriente. Mas a influência que posteriormente vieram a ter na corte do imperador e na China deve-se, sobretudo, à sua erudição e conhecimento das ciências, nomeadamente da astronomia.

«Os jesuítas haviam observado a incapacidade dos chineses para prever correctamente a ocorrência de eclipses, bem como a sua incapacidade para resolver a relação entre os calendários solar e lunar», como o descreve Russel-Wood no seu livro Um Mundo em Movimento: Os Portugueses na África, na América e na Ásia, 1415-1808. Percebendo a importância que esse problema tinha para a sociedade chinesa, Ricci escreveu insistentemente para Roma, pressionando Galileu e outros astrónomos a que os ajudassem. «Para nós é certo que as matemáticas nos abrirão o caminho», escreveu o padre Longobardo em pedido desesperado para Roma, «mandem-nos matemáticos». Noutra altura, o padre João Rodrigues escreve de Cantão: «mandem-nos livros de matemática em grande quantidade!»

Os pedidos de Ricci e dos missionários foram atendidos e vários matemáticos e astrónomos europeus deslocaram-se para a China. Estabeleceram-se em Pequim, penetrando na Cidade Proibida e convivendo com os mandarins e dignatários da corte do imperador. Ricci tornou-se conhecido por «Hsi-ju», «O homem sábio do Ocidente».

A astronomia ocidental estava mais adiantada que a chinesa e alcançava resultados práticos que os orientais não obtinham, nomeadamente na previsão dos eclipses. Os ocidentais desempenharam um papel importante na reforma do calendário chinês, que estava baseado nos ciclos lunares e que, progressivamente, se tinha afastado dos ciclos das estações anuais. O calendário era decisivo para o império, como é natural, pois é um instrumento básico de uniformização da vida civil, da colecta de impostos, da organização das colheitas.

A astronomia ocidental, no entanto, estava mais errada que a chinesa em alguns aspectos cosmológicos importantes. É curioso que Ricci, ao enumerar o que considerava os «absurdos» da cosmologia chinesa, apontasse eles considerarem que «só existe um céu (e não dez céus). Está vazio (e não sólido). As estrelas movem-se no vácuo (em vez de estarem fixas no firmamento)». Outro «absurdo» enumerado por Ricci seria que «eles não sabem que há ar (entre as esferas) e afirmam que há o vazio».

Como se sabe, a cosmologia ptolemaica e aristotélica da época admitia que os corpos celestes se moviam em esferas cristalinas, como Camões tão bem descreve em Os Lusíadas. As estrelas estariam fixas na esfera do Firmamento. «Debaixo deste grande Firmamento», escrevia o poeta, «vês o céu de Saturno, Deus antigo», e abaixo deste encontrar-se-iam as esferas dos outros planetas, do Sol e da Lua. Sabemos hoje que os chineses se encontravam, afinal, mais perto da verdade. As estrelas não estão cravadas numa esfera mas existem no espaço interestelar. Não há esferas cristalinas em que os corpos celestes se movem. Não existe ar entre a Terra, os planetas e as estrelas.

Na observação astronómica, os chineses encontravam-se também mais avançados que os ocidentais. Há séculos e séculos que observavam sistematicamente os céus, tomando nota dos fenómenos celestes mais importantes, e tinham detectado explosões de estrelas, nomeadamente a explosão em supernova registada em 1054 e que hoje revela os seus restos na nebulosa do Caranguejo. Os ocidentais, convencidos da imutabilidade dos céus, um dos dogmas fundamentais da cosmologia aristotélica e cristã, ridicularizavam tais descobertas. O escritor francês De Fontenelle, por exemplo, ironizava em 1686 que «é aborrecido que estes espectáculos (meteoros e supernovas) estejam reservados para a China e que não possam ser vistos nos nossos países...» O que acontecia, na realidade, era que as crenças dos ocidentais os impediam de acreditar nas alterações do céu e que a Europa tinha estado durante muito tempo adormecida e de costas voltadas à observação e à experiência.

Pelo seu lado, os chineses mantiveram durante séculos, talvez quase três milénios, com algumas interrupções, uma observação sistemática dos fenómenos celestes. Segundo relata uma testemunha da época, o francês, Lecomte, «eles ainda hoje continuam as suas observações. Cinco matemáticos passam cada noite na torre observando o que se passa por cima das suas cabeças; um fixa-se no zénite, outro no leste, um terceiro no oeste, o quarto vira os seus olhos para sul, e um quinto para norte, de forma que nada do que se passa nos quatro cantos do mundo pode escapar à sua diligente observação.»

Com tal fascínio pela observação astronómica, compreende-se que os chineses tenham ficado deslumbrados quando os ocidentais lhes mostraram e ofereceram telescópios. Foi um mundo novo que se lhes revelou: as fases de Vénus, os satélites de Júpiter, a estranha forma de Saturno.

A influência dos jesuítas na corte do imperador foi tanta que estes foram encarregues de reconstruir e equipar o observatório de Pequim. Ainda hoje aí se encontram muitos dos instrumentos que os ocidentais introduziram, nomeadamente as esferas celestes e os quadrantes metálicos. Mesmo depois do édito imperial de 1724, que expulsou os cristãos da China, os jesuítas foram autorizados a residir em Pequim e continuaram a ocupar lugares de relevo na hierarquia científica da corte. Integraram o observatório (Tribunal Astronómico) e o Tribunal das Matemáticas, organismo que abrangia a matemática, a geografia e a cartografia. Muitos eram portugueses, como o padre André Pereira (1689-1743), natural do Porto, que em 1724 se tornou astrónomo e matemático da corte e foi promovido pelo imperador a vice-presidente do Tribunal Astronómico, e o padre José de Espinha (1722-1788), natural de Lamego, que recebeu do imperador a dignidade de Mandarim e ascendeu a presidente do dito organismo científico.

Os «padres da corte» - como eram conhecidos entre os portugueses - alcançaram tal influência política que foram várias vezes decisivos na defesa das posições portuguesas. Como o relata Francisco Rodrigues, em obra reeditada pelo Instituto Cultural de Macau com o título Jesuítas Portugueses Astrónomos na China, é bem possível que Macau tenha sobrevivido graças aos jesuítas de Pequim. Em 1622, por exemplo, a cidade estava cercada por terra e mar pelas forças do governador de Cantão. Foram os padres da corte que fizeram diligências desesperadas e conseguiram de Pequim um diploma que indicava ao governador provincial a manutenção da presença portuguesa em Macau.

Para o Oriente, é história extraordinária de persistência. Para o Ocidente, é uma extraordinária história de respeito pelo saber e pela ciência.

Nuno Crato


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