A Casa Literária do Arco Cego – “Sem livros não há instrução”

 

Passaram 200 anos sobre criação de uma tipografia que teve apenas 28 meses de actividade. Esse facto não mereceria destaque se não se tratasse de uma casa impressora com uma actividade editorial impressionante, e que teve como director o botânico Frei Mariano Veloso (1742-1811).

 

Frontispício de «Memoria sobre a Cultura, e Productos da Cana de Assucar».


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Gravura de «Aviario Brasilico ou Galeria Ornithologica de Aves Indigenas do Brasil».

A Casa Literária do Arco do Cego foi criada em 1799 por D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), que desempenhou diversas funções políticas no reinado de D. Maria I. À época da criação da Casa Literária era Ministro da Marinha e Ultramar, sendo a partir de 1801 Presidente do Real Erário. A criação da oficina do Arco do Cego inseria-se numa política colonial que privilegiava o Brasil, fonte primordial da prosperidade comercial da metrópole.

Importava difundir as luzes da ciência, sobretudo na agricultura, e as obras impressas no Arco do Cego revelam bem esse propósito de divulgação, concretizando um modelo de cultura característico do Iluminismo. A história natural era considerada numa perspectiva utilitarista, tendo como fim a sua contribuição para o desenvolvimento da economia do país. Através dos livros e das gravuras seria possível difundir conhecimentos que, ao serem aplicados, contribuiríam para o aumento e diversificação da produção agrícola. O conhecimento científico permitia ao mesmo tempo concretizar os anseios de uma elite desejosa de acompanhar os modelos franceses e ingleses de gosto pelo coleccionismo, pela criação de jardins botânicos e pela constituição de gabinetes ou museus.

Frei Mariano Veloso, encarregado pelo vice-rei do Brasil, Luís de Vasconcelos e Sousa, de recolher espécies exóticas para o Real Museu e Jardim Botânico da Ajuda, seria mais tarde chamado a chefiar este projecto editorial de difusão científica, cargo que desempenhou com invulgar dinamismo. Quando em 1790 foi convidado a vir para a metrópole, trouxe consigo 70 ‘caixões’ com colecções de exemplares recolhidos, a juntar aos muitos exemplares anteriormente recolhidos, classificados e enviados por si do Brasil.

 

Em Portugal, Mariano Veloso constatou a fraca produção nacional de textos impressos, enquanto tentava publicar a sua obra de recolha e classificação de espécies vegetais, Florae Fluminensis. A partir de 1796 publicou em Lisboa o periódico agrário Paládio Português e Clarim de Palas que anuncia periodicamente os novos descobrimentos e melhoramentos na agricultura, artes, manufacturas, comércio, e oferecido aos senhores deputados da Real Junta do Comércio. Entretanto traduziu, compilou e coordenou a publicação em diversas tipografias de Lisboa de textos com novidades agronómicas com interesse para as explorações do Brasil. A partir de 1798 e até 1806 organizou a publicação de uma obra em cinco tomos, divididos em dez volumes, com textos recolhidos de autores norte-americanos e europeus, intitulada O Fazendeiro do Brasil cultivador.

 

D. Rodrigo de Sousa Coutinho convidou Mariano Veloso a dirigir a Tipografia do Arco do Cego. Este rodeou-se de um grupo de jovens intelectuais brasileiros que se encontravam na metrópole, entre os quais estavam Hipólito José da Costa, futuro jornalista e editor do Correio Braziliense (1808-1822), defensor da independência do Brasil, e Vicente Seabra da Silva, químico. Muitos destes intelectuais fizeram traduções ou edições próprias no Arco do Cego. Veloso relacionava-se ainda com diversos correspondentes brasileiros, cujos textos publicava. Entre os assalariados portugueses contava-se o poeta Bocage, como tradutor e revisor. As publicações do Arco do Cego eram promovidas através da edição de catálogos que divulgavam as obras já publicadas e as que se encontravam ainda no prelo. Os livros impressos eram vendidos em casa própria, localizada no Rossio, sendo muitos enviados para o Brasil e alguns distribuídos pela província. Note-se que a impressão no Brasil só seria autorizada a partir de 1808, com a presença da corte no Rio de Janeiro.

 

Durante o período de funcionamento foram publicados 83 títulos, 36 de autores portugueses, 41 traduções e 6 em latim. Quando foi encerrada, em1801, muitos títulos ficaram por publicar e outros foram publicados pela Imprensa Régia. Dos 83 títulos, 44 continham gravuras executadas na calcografia, num total de 360 gravuras. Sabe-se, no entanto, que muitas gravuras foram impressas para serem vendidas em avulso.

A Tipografia concentrava várias funções ligadas às artes gráficas. Tipografia, calcografia, com um corpo próprio de gravadores, e tipoplastia, que produzia os seus próprios tipos. Pretenderia Mariano Veloso criar uma auto-suficiência que permitisse dispensar a divisão dos trabalhos por várias oficinas e até com outros países, como era usual até então.

 

As áreas de publicação abrangem a História Natural, a Agricultura, o Desenho, a Pintura, a Medicina, a Poesia, a Náutica, as Ciências exactas e a História. A divulgação era a preocupação central destas edições e as imagens eram um recurso indispensável a esta tarefa de instrução e entretenimento. De facto, as obras ilustradas ultrapassam em número as obras não ilustradas, o que está em íntima relação com o tipo de conteúdos que eram seleccionados para publicação.

 

Para se conseguirem atingir os objectivos editoriais pretendidos foi criada uma Aula de Gravura, onde se aprendia fazendo. Embora tenham sido contratados alguns desenhadores, a esmagadora maioria das produções gráficas era constituída por reproduções, o que explica o elevado número de gravadores que se atingiu no curto período de vida da calcografia, número que chegou a atingir os 24 gravadores.

«Principios da Arte da Gravura»

Nos finais do ano de 1801 a Casa Literária do Arco do Cego foi encerrada e todo o seu material incorporado na Imprensa Régia. Mariano Veloso foi nomeado membro da Junta Administrativa, Económica e Literária da Imprensa Régia. Com a fuga da corte para o Brasil, na sequência das invasões francesas de 1807, também Mariano Veloso se despediu da capital e regressou ao Rio de Janeiro.

 

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Catálogo Bibliográfico publicado a propósito do Bicentenário da Casa Literária do Arco do Cego, que inclui vários estudos sobre a sua actividade.

Entre as razões que levaram ao encerramento desta Casa Literária e sua integração na Imprensa Régia, antecessora da actual Imprensa Nacional, terão estado os défices financeiros registados nas suas contas. No entanto, o que fica bem evidente na actividade desta Casa é o dinamismo e a qualidade das suas edições, sem paralelo noutras casas editoriais portuguesas existentes na época, nomeadamente na importância concedida às imagens. Destaque-se, em particular, o número de edições de áreas científicas e técnicas, que noutras casas editoriais eram normalmente preteridas em relação às religiosas. Pode afirmar-se, sem dúvida, que os propósitos de Mariano Veloso eram a promoção das ciências e da história natural em particular, áreas do conhecimento que muito interessavam ao desenvolvimento económico do Brasil, principal alvo das publicações. Como escrevia Mariano Veloso, “Sem livros não há instrução”.

 

Para se saber mais sobre a actividade da Oficina da Casa Literária do Arco do Cego, depois chamada Tipografia Calcográfica e Literária do Arco do Cego, e finalmente Tipografia Calcográfica, Tipoplástica e Literária do Arco do Cego, aconselha-se a consulta da obra editada pela Biblioteca Nacional e pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801), Bicentenário, editada em 1999, que inclui textos de vários investigadores.

Fernando Reis


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