Ildeu C. Moreira

“Theorica Verdadeira das Marés” (1737): O Primeiro Texto Newtoniano em Português

I. C. MOREIRA, C.A. NASCIMENTO, L.R. OLIVEIRA

Instituto de Física, UFRJ

Revista de Ensino de Física vol. 9 nº 1 Out./1987



  1. Introdução

Isaac Newton (1642-1727)
pintura de Kneller 1702, National Gallery, London

  Neste ano de 1987 comemora-se os 300 anos da publicação dos Principia de Newton; no mundo inteiro estudiosos e cientistas de várias áreas, em particular os historiadores da ciência, dedicam parte de seus esforços em busca de um entendimento mais profundo das raízes, do conteúdo e da influência da obra de Newton. Um tipo específico de estudo, onde se analisa a penetração de novas idéias em contextos culturais diversos, tem sido fonte de importantes trabalhos em anos recentes (1) e pode contribuir, ainda hoje, no entendimento de como as teorias científicas são aceitas, rejeitadas ou remodeladas. A complexidade dos fatores de ordem científica, filosófica, cultural, política, econômica, etc., que presidem essa penetração de concepções novas evidenciam a dificuldade de tal tipo de análise.

Embora entre nós muito pouco tenha sido feito nessa direção, é interessante analisarmos em que medida a obra dos principais criadores da ciência moderna, em particular de Newton, influenciou a formação da mentalidade cultural no Brasil do século XVIII. A situação do Brasil, como colônia de Portugal nesta época, nos remete a um estudo mais amplo da penetração das idéias modernas (no contexto do século XVIII) em Portugal em oposição às concepções escolásticas dominantes (2). Evidentemente não temos aqui condições nem competência para analisarmos essas questões com a profundidade que merecem; no entanto, nos parece que refrescar ou recuperar, mesmo que de relance, um pouco da memória de nossa formação cultural pode contribuir para entendermos um pouco melhor os fatores que determinaram nosso atraso científico ou mesmo algumas das dificuldades que são encontradas cotidianamente no ensino, como a resistência à experimentação e concepções livrescas e elitistas do conhecimento.

Com uma pretensão bem mais modesta que o expresso no parágrafo anterior, escolhemos relembrar o primeiro texto newtoniano em português como ponto de reflexão singular nesta história complexa do embate entre as idéias da ciência moderna e as escolástica-aristotélicas no século XVIII. O texto foi escrito pelo médico português Jacob de Castro Sarmento, refugiado em Londres, e publicado em 1737 com o título: “Theorica Verdadeira das Marés, conforme a philosophia do incomparável cavalheiro Isaac Newton”, tendo ainda o mérito de ser uma das primeiras obras de divulgação do trabalho de Newton, em particular no que se refere à explicação das marés, a vir à luz na Europa. Apresentamos a seguir um breve apanhado da vida e obra de Sarmento seguido de alguns comentários e da obra citada.

  
2. O Autor: Jacob de Castro Sarmento

  Jacob de Castro Sarmento nasceu em Bragança, Portugal, em 1691 e morreu em Londres em 1760. Formou-se em Artes na Universidade de Évora e em Medicina na de Coimbra em 1717. Em 1721 abandonou definitivamente Portugal indo residir em Londres, seis anos, portanto, antes da morte de Newton; as razões para tal exílio voluntário prendem-se, quase certamente, à necessidade de fugir dos rigores do Santo Ofício da Inquisição que, estabelecida em Portugal desde meados do século XVI, estava particularmente ativa no primeiro quartel do século XVIII. Em Londres, onde assumiu explicitamente a sua fé judaica, estuda vários ramos da filosofia natural e experimental, tendo-se doutorado posteriormente pela Universidade escocêsa de Aberdeen, onde fez parte do corpo docente. Seus trabalhos e atividades científicas, em especial na área médica, deram-lhe prestígio suficiente para se tornar membro do Real Colégio de Médicos e ser eleito sócio da Royal Society em 1730 (3). Conviveu também com importantes reformadores portugueses como Ribeiro Sanches e o Marquês de Pombal quando este era ainda Ministro junto à Corte Inglesa.

  
Em 1730, o 4º Conde de Ericeira consulta-o, em nome do rei de Portugal D. João V, sobre como reformar os estudos médicos em Portugal. Sarmento sugere: a tradução das obras de Francis Bacon, o envio ao estrangeiro de jovens de talento para, no retorno a Portugal, difundirem o conhecimento adquirido, e banir todo ensino escolástico, substituindo-o por um baseado na experimentação e nas matemáticas. Inicia a tradução das obras de Bacon, enviando as primeiras folhas para Portugal em 1731 (4), mas logo suspende esta atividade porque nem sequer a despesa feita até então lhe foi paga (segundo d’Esaguy (5), o rei cedeu a intrigas dos jesuítas e lhe retirou o mandato de reformador). As medidas renovadoras sugeridas por Sarmento foram rechaçadas pela estrutura fechada da sociedade portuguesa de então, ao se defrontar com a estrutura multisecular de um ensino controlado por poderosos interesses religiosos e políticos. Somente algumas décadas depois as reformas introduzidas por Pombal responderiam a certas necessidades sociais transformadoras e viriam repercutir na estrutura do ensino no Brasil, especialmente com a expulsão dos jesuítas.

 
Sarmento, em várias outras ocasiões, continuou tentando influenciar no desenvolvimento dos métodos experimentais em Portugal: ofereceu à Universidade de Coimbra um microscópio, além de um plano para a criação de um Jardim Botânico com o compromisso de enviar sementes e plantas dos jardins de Londres; fez também análises cuidadosas das águas termais portuguesas. Em seus estudos médicos publica vários livros entre os quais um Tratado de operações de Cirurgia (1746) e a Matéria Médica Physico-Historico-Mechanica do Reino Mineral (1735). Foi também o provável criador do medicamento Águas da Inglaterra de ampla difusão na Europa e que, ainda hoje, pode ser encontrado em floras naturais e boticas.

 
Como outros cientistas portugueses, em especial médicos, dos séculos XVI e XVII, exilados na França, Holanda, Inglaterra e Rússia, por obra e graça das perseguições do Santo Ofício e da ausência de condições para a formação e o desenvolvimento de atividades científicas livres, Sarmento foi contribuir fora de Portugal para a aceitação e o uso dos métodos experimentais nos estudos da natureza ligados à medicina.

  3.  A «Theorica Verdadeira das Marés»

  Destinado a divulgar as idéias newtonianas, a partir da discussão de um de seus maiores feitos explicativos: o porquê e o como das marés, o livro de Jacob contém quatro partes principais: a Dedicatória e o Prólogo ao Leitor, introdutórios, onde são apresentados os propósitos da obra; uma parte dedicada a uma descrição de Newton, seu caráter e personalidade; o texto propriamente dito onde, sem a utilização de fórmulas matemáticas, mas descritivamente e com o auxílio de várias figuras, explica-se a origem das marés; e um apêndice intitulado “Demonstração de que a Lua se retém no seu orbe pela Força da Gravidade”. Nesse apêndice se mostra, geométrica e simplificadamente, como a atração gravitacional da Terra conduz à órbita circular da Lua; a noção de força centrífuga é aí introduzida, erroneamente, com o mesmo significado da “vis insita” (força inata ou inercial) de Newton. Na parte dedicada à figura de Newton, Sarmento traduz o ambiente de extraordinária admiração dedicada ao “incomparável cavalheiro” prevalescente na Inglaterra logo após a sua morte: atribui a Newton, além de uma genialidade sem par (levou os escrutínios da natureza “a uma tão grande perfeição que excedeu tudo o que nos consta fizeram os filósofos assim antigos como modernos todos juntos”), as virtudes mais elevadas (“ ...mas o que faz, e fará sempre mais perfeito e completo o seu caráter ilustre é que as virtudes morais da humanidade, amizade, generosidade, humildade, modéstia, etc., estavam nele num grau tão superior…”). Não se trata de uma tradução de obra de Newton mas de um texto de divulgação próprio. A escolha do tema, o estudo das marés, provavelmente ocorreu em função de se tratar de um assunto ligado ao mar, questões sempre tão caras aos portugueses desde a tradição navegadora dos séculos XV e XVI, e também em função da visão própria de Sarmento que atribuía aos astros, em particular à Lua, uma influência sobre os fenómenos terrestres, dentro de uma importante tradição médica reinterpretada agora dentro do paradigma gravitacional newtoniano.

 
Possivelmente Sarmento foi influenciado por outros divulgadores de Newton; os mais importantes que o antecederam sendo: D. Gregory, 1702 (7), H. Pemberton, 1728 (8), W. Gravessande, 1720 (9) e seu amigo J.T. Desaguliers, 1734 (10). Muitas outras obras de divulgação que desempenharam papel importante no século XVIII foram posteriores a 1737 como, por exemplo, a de Colin McLaurin, 1748 (11), ou as de Voltaire, 1738 (12) ou Euler, 1768 (13).

 
É difícil aquilatar qual a repercussão real da Theorica; o fato de ter sido escrita em português, dentro dos propósitos do autor, limitava bastante seu conhecimento fora de Portugal, à exceção, talvez, da Espanha(14). Acrescente-se a isso a dificuldade da penetração de textos que defendiam as idéias modernas devido ao controle rígido de censura inquisitorial em Portugal e no Ultramar. No entanto, conseguimos detectar a presença de alguns volumes esparsos da obra em bibliotecas no Brasil Colonial como, por exemplo, na biblioteca de Silva Alvarenga (15), um dos fundadores das primeiras sociedades científicas no Brasil. O que vem inclusive mostrar que, apesar de toda a repressão e controle da censura inquisitorial e da régia, houve sempre pessoas e mecanismos que conseguiram, mesmo que precariamente, romper o bloqueio às novas idéias(16).

 
Deixaremos agora a você, leitor benévolo, o prazer de encontrar claramente expressos na Dedicatória e no Prólogo ao Leitor da “Theorica”, as dificuldades e a importância da difusão das novas idéias em Portugal, não sem antes destacarmos alguns pontos que, particularmente, nos atraíram a atenção:

 I
) A Dedicatória feita a D. Manoel José de Castro Noronha, Ataíde e Souza, nono Conde de Monsanto é extensa - contendo seus inúmeros títulos tais como o de Senhor de Itamaracá, Taparica, etc. no Brasil - e altamente laudatória, aliás como de praxe na época, atribuindo ao possível protetor e ao soberano (D. João V) qualidades e interesses intelectuais que provavelmente não possuiam; trata-se de uma possível tentativa política de levar os poderosos da época a se interessarem, de algum modo, pela difusão e uso das novas idéias. Em vários pontos se destaca também a importância prática da nova Filosofia e as conseqüências benéficas que poderia trazer para a riqueza da nação.

 II
) Sarmento chama a atenção para os custos dos aparatos necessários para experiências científicas, o que tornava difícil a um particular, sem apoio de algum soberano ou academia, desenvolver os seus trabalhos. Embora a relação entre a pesquisa e o Estado se desse a um grau muito diverso do atual, fica claro, no entanto, a importância dessa relação mesmo naquela época.

 III
) Coerente com sua formação médica e seus interesses, Sarmento, no Prólogo, se refere à atração gravitacional como tendo importantes conseqüências médicas, atribuindo à influência lunar o aparecimento de doenças e a existência de ciclos biológicos na Terra. Na esteira de outros médicos e cientistas da época (como o próprio Richard Mead, que foi médico de Newton) ele foi, na realidade, um dos principais divulgadores do chamado “mecanicismo” na medicina como comprovam outras de suas obras já citadas. Alguns historiadores contemporâneos especulam se tais idéias de interferência dos astros, presentes nos conhecimentos médicos (na Astrologia, Alquimia, etc.) anteriores a Newton, não teriam tido algum grau de interferência na concepção newtoniana da atração gravitacional.

 IV
) Sarmento destaca, exemplificando como caso da Inglaterra, a importância de serem escritos e difundidos textos científicos e de divulgação da nova ciência na “língua natural e própria”, o português, “pois com isto chegará a todos a utilidade e o desejo de saber” e “em lugar de estar uma Filosofia inútil e falsa nas mãos e vã soberba de poucos, sem utilidade ou serventia alguma, poderão os doutos e os vulgares trabalhar na verdadeira e serem Filósofos todos em benefício e aumento da República”. Não é preciso destacar a atualidade, ainda hoje, dessas preocupações de nosso autor, em particular no que se refere ao nosso país. Em função da extensão eliminamos algumas partes dos textos - em especial os inúmeros títulos do Conde de Monsanto que, pensamos, não prejudicarão o conjunto das idéias ali expressas. Fizemos também algumas modificações ortográficas menores com a finalidade de melhorar o entendimento, procurando não descaracterizar o texto.

  4. a. Dedicatória

  (…) O fluxo e refluxo do mar, ainda que efeito tão comum que o observamos cada dia, foi sempre um dos mais pasmosos e inexplicáveis fenômenos da natureza. E quantos séculos iria continuando o mundo filosófico sem saber a sua verdadeira causa, se o imortal Newton não houvera existido para descobri-la, é questão que se não pode determinar. Que os filósofos se acham de presente satisfeitos com a mais exata e verdadeira explicação dessa abstrusa parte da filosofia natural, espero eu que sirva de alguma prova com esta Teórica, que ofereço agora a V.E., a qual se deve considerar como um comento ao que aquele grande gênio nos deixou escrito sobre esse assunto. Nele, o meu principal escopo foi o fazê-lo tão fácil e inteligível a qualquer pessoa, quanto pode admitir a matéria, para cujo fim fiz uso de uma expressão difusa e copiosa e acrescentei maior número de figuras do que as de que até agora se tem feito uso, para ajudar e facilitar o juízo a perceber a verdade e certeza desta teórica; a qual é tão infalível e clara e tão certos e demonstráveis os princípios em que se funda que, depois de toda essa impressa, saiu a luz meu bom amigo e sócio Dr. Desaguliers, em outubro deste ano de 1737, com um instrumento mecânico em que mostra aos olhos a variedade das marés e todos os seus fenômenos, e que sua construção é deduzida dos mesmos princípios.

A primeira vez que fêz público e eu vi e examinei com maior gosto este curiosíssimo instrumento foi nos Banhos, ou Caldas Bathonienses, noventa milhas distantes de Londres, onde o dito doutor o explicou a uma grande parte da nobreza a quem estava lendo um curso de Filosofia Experimental e Mecânica, e as demonstrações que se fazem com dita máquina tem lugar e confirmam a seguinte Teórica, quer seja o Sol que se move, quer a Terra.

E ainda que no seguinte tratado vamos supondo o movimento da Terra, tanto por seguirmos o estilo do autor que comentamos, como por estar como matéria assentada entre todos os matemáticos de França, Itália, Alemanha, Inglaterra, etc., nem por isto fazemos menção dele como essencial para a Teórica seguinte, mas antes deixamos inteiramente ao arbítrio e opinião do leitor, no que respeita esta parte, o assentir ou dissentir, pois como levamos dito, a verdade e certeza da seguinte Teórica é sempre a mesma, quer seja o Sol que se move quer a Terra.

O haver o grande Newton investigado e descoberto a verdadeira causa do fluxo e refluxo das águas, e depois disso o haver trazido a demonstração que a força, que causa as marés, retem também a Lua no seu Orbe, bastariam somente para fazer imortal o nome deste Filósofo ilustre, e com tudo isso tem estes uma pequena parte a respeito dos vastíssimos descobrimentos com que ilustrou o mundo, os quais só os pode inteiramente avaliar quem tem a felicidade de os entender.

A sua Filosofia Experimental e demonstrativa, armada da verdade e força geométrica, tem entrado, senhor, por toda a Europa, menos Portugal e Espanha, sem encontrar a menor resistência, e como a preocupação com que os nossos portugueses retêm geralmente as idéias de Aristóteles, e alguns as de Descartes, são um gravíssimo impedimento para se difundir esta grande luz nesse reino; levado da glória dessa nação e pátria minha, e do natural impulso com que V.E. ama a matemática, escrevi este comento a propósito, pelo método mais claro e evidente, para que chegasse a todos uma idéia deste filósofo ilustre, pois pelo dedo se conhece o gigante e para que V.E. concorra (e este é o especial intento desta dedicatória) com a sua grande opinião e autoridade, para a introdução da Verdadeira Philosofia Natural, ou Newtoniana, nesse Reino, e tenha a glória, entre os mais, de fazer um tão grande serviço à Pátria. A ocasião, Excelentíssimo Senhor,não pode ser mais oportuna nem mais própria, pois necessitando essa Filosofia de um grande aparato de instrumentos para fazer as demonstrações, e, consequentemente, daquela despesa que a um particular se lhe faz dificultosa - nesse feliz Reinado, em que S. Majestade, para utilizar a seus vassalos, não faz caso dos maiores dispêndios - tem V.E. o caminho aberto para trazer à execução projeto tão louvável e tão justo. Pois é caso lastimável (nem faltam nesse Reino um e mais talentos, que se compadecem do mesmo) que, quando todas as nações da Europa se estão aproveitando do benefício que trazem à República os descobrimentos da Filosofia Newtoniana, e cada uma delas trabalhando noite e dia para descobrir outros novos, deduzidos dos mesmos Princípios, estejam os nossos portugueses, que na penetração e índole dos gênios os excedem a todos, perdendo o seu tempo e abusando da sua grande capacidade e agudeza, com uma Filosofia falsa, inútil e contenciosa.

Que progressos fariam os nossos, na Filosofia verdadeira, natural e demonstrativa, e nas mais Artes, que dependem tanto dela, bem se exemplifica no primeiro Genio, que por ordem e judiciosa eleição de S. Majestade, se aplicou em Londres a esta espécie de estudo, em que no breve espaço de quinze meses de tempo, penetrou e viajou mais longe no mundo filosófico, do que em muitos anos se pode esperar de um grande engenho (…)

As artes mecânicas, como V.E. sabe, são para o público da maior vantagem, comodidade e ornamento, em qualquer domínio; e como todas elas tem a maior dependência desta filosofia, nem se podem levar a sua maior perfeição sem o conhecimento ou exercício dela e concorrer V.E. para a introdução e estabelecimento desta espécie de sabedoria, nesse Reino, é não mais que fazer o primeiro descobrimento de uma mina, de que o Príncipe e os povos tirarão a maior conveniência. E como V.E., por patrimônio de sua ilustre família, deve tomar o interesse de ambos à sua conta, razão será que V.E. represente ao Augusto Príncipe que ocupa o trono, as conveniências, que se seguem a seus vassalos, e a reputação e glória de seus Reinos, da introdução de uma filosofia, que serve e traz benefício geral a toda República (…)

(…) O mais obrigado e o mais Humilde criado de V.E.

Jacob de Castro Sarmento

  4. b.  Prólogo ao Leitor
  Ofereço-te, leitor português, (e parece-me que te posso chamar amigo, pela comunicação que temos naquele epíteto) no seguinte tratado, aquele grande descobrimento que tantos séculos investigou e ignorou o mundo: as causas naturais do fluxo e refluxo das águas. Na resolução que tomei de o escrever na nossa língua portuguesa conhecerás que me leva mais atrás de si o amor da pátria que o da conveniência própria, pois sendo este comento, na difusão e clareza do Método, o primeiro que sai à luz na Europa sobre o que o grande Newton nos deixou escrito sobre a matéria, claro fica que, se o publicasse em uma língua mais geral do que a nossa, poderia esperar dele muito maior conveniência. Neste seguro, ainda que o estilo te desagrade e a pureza da língua te descontente, deves agradecer-me a minha boa vontade. Nem me arguas, te suplico, que a matéria deste Tratado fica fora da Faculdade que professo e que bem escusado me fôra o meter a minha foice em seara alheia; porque, além de que te pudera satisfazer, que assim como a vista se cansa, fatiga e enfraquece, olhando sempre fixa para o mesmo objeto, e se recobra e deleita, variando, também o nosso juízo se cansa, enfraquece e fatiga, discorrendo sempre sobre a mesma matéria, e com esta espécie de relaxação e variedade se recobra e se deleita; devo advertir-te que o conhecimento das forças do Sol e da Lua, que causam o fluxo e refluxo das águas, merece tanto a consideração e contemplação do médico na cura das doenças que se não podem explicar bem e remediar alguns dos sintomas delas sem um exato e verdadeiro conhecimento das mesmas forças. Nem se podem totalmente conceber, sem o seu concurso, as Epilepsias e Vertigens periódicas que repetem somente nas luas novas e luas cheias. Aquela moça epilética que tinha umas manchas na cara, que na cor e grandeza variavam conforme as fases da Lua. As fúrias dos maníacos, que repetem com maior veemência na Lua Nova e na Lua Cheia; donde nasceu e teve origem o chamar aos loucos geralmente Lunáticos. As paralisias periódicas que se tem observado seguir constantemente o curso da Lua. Os fluxos de sangue que apareciam somente no tempo da Lua Cheia. As chagas, cujo efluxo de matérias se achou por experiência seguiram os movimentos da Lua. As dores nefríticas e supressões de urina periódicas, seguindo constantemente o movimento da Lua e repetindo sempre quando Cheia. E finalmente as crises das doenças agudas que se não podem explicar ou entender sem a compreensão e concurso daquelas forças.

E é esta doutrina tão plausível e tão certa que sempre a  reconheceu a sabedoria e experiência dos gregos e latinos, e a confessa a  dos modernos; ainda que, o como aquelas forças produzem os seus efeitos nos corpos humanos, antes que o imortal Newton o descobrisse o ignoravam todos. E, se o gosto de saber ou a curiosidade te moverem a examinar o como, peço-te que consultes com toda a atenção e desvelo aquele pequeno, mas profundíssimo Tratado do mais famoso médico do nosso Colégio (*), De Imperio Solis, ac Lunae in Corpora Humana, et Morbis inde oriundis.

Já tu sabes, leitor benévolo, o motivo que me moveu a escrever este Comento; e, se estando ausente dela, estudo mais que o meu interesse a glória da Pátria, tu, que a gozas, e é teu interesse que ela floresça, que menos podes fazer que assistir com a tua aprovação e concurso para tudo o que a pode aumentar? Aplica-te à Filosofia Newtoniana, Natural e Demonstrativa, e verás pelo tempo adiante, o benefício que colheste e o que trouxeste à República.

Aos princípios desta Filosofia, ou à compreensão das forças Centrípeta e Centrífuga, deve o seu descobrimento a pasmosa fábrica de um relógio de dois pêndulos, que, com mútuo acesso e recesso, se movem num meio círculo; cuja construção e mecanismo serve de admiração aos artífices mais peritos e aos homens mais sábios; pois nem os maiores balanços de um navio lhe podem alterar o seu movimento, nem o maior grau de calor o faz ir mais apressado, nem o maior grau de frio o faz ir mais vagaroso, de maneira que, com toda a variedade de tempos, nunca tem excedido de um segundo por mês a sua diferença: circunstâncias que fazem mais que provável o conseguir-se aquele grande descobrimento da longitude por meio deste admirável instrumento; e fica seu autor a partir com ele para a Índia em um navio que nomeou a propósito o Almirantado da Inglaterra para fazer com ele os exames e prova que se necessitam, por uma Lei do Parlamento, para haver de ganhar o prêmio de quatrocentos mil cruzados, que ao descobridor se lhe tem assinado (§).

Agora te pergunto, leitor sincero e desapaixonado, não seria melhor para o particular e para o público que a agudeza dos nossos grandes gênios se empregasse em uma Filosofia, que mostra aos olhos o que dita aos ouvidos e que traz estes e outros descobrimentos à República, do que fatigar-se e consumir-se com uma continuada e inútil controvérsia de Utrum detur Ens rationis, Universale a parte rei, e outras fábulas desta casta de que se compõem e está cheia da Aristotélica, indignas do juízo e atenção humana?

Concorre, pois, leitor português, para essa mudança tanto de teu interesse e honra de tua pátria; promove quanto em ti estiver a introdução da Filosofia Verdadeira Newtoniana e Experimental; e se se imprimir e ensinar na nossa língua portuguesa tanto melhor, pois com isso chegará a todos a utilidade e o desejo de saber (+).

E em lugar de estar uma Filosofia, inútil e falsa, nas mãos e vã soberba de poucos, sem utilidade ou serventia alguma, poderão os doutos e os vulgares trabalhar na verdadeira e serem Filósofos todos em benefício e aumento da República.

Bem podes agradecer, oh! leitor benigno, ao grande talento e excelente gênio do R. P. Manoel de Campos, digno religioso da Companhia, o haver lançado os primeiros fundamentos a esta mudança e animado numa tão louvável empresa, com os seus Elementos de Geometria, que fez imprimir na nossa língua portuguesa, pois não só, depois de instruído neles como seu discípulo, te deixa qualificado para entrares na Filosofia Newtoniana a fazer o teu progresso, mas com a mesma obra te convence e manifesta que em tudo se pode falar na nossa língua, e que é da maior vantagem a qualquer nação, por mais difícil e abstrusa que seja, o escrever e ensinar toda a casta de Ciência na língua natural e própria.

  Notas de Sarmento:

(*)    O Dr. Ricardo Mead, primeiro médico de El Rei da Grã Bretanha e no presente médico do magnífico Hospital de St. Thomas.

(§)   Gastou o autor nesta obra o tempo desde o ano de 1731 até o ano de 1736. E sendo homem do campo, e o seu ofício torneiro, todas as partes de que se compõem a delicada fábrica deste relógio, assim de pau como de cobre, ferro, latão, aço, etc. foi tudo feito, temperado, polido e aperfeiçoado por sua própria mão.

(+)   Se as doutrinas do ilustre Newton não estivessem impressas na língua inglesa, mal poderia o inventor do sobredito relógio, que não sabe a latina, intentar um descobrimento da maior utilidade e uso para todo o gênero humano.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Veja, por exemplo, P.C. Abrantes, “La Reception en France des Theories de Maxwell Concernant L’Electricité et le Magnetisme”, tese de Doutorado, Paris, 1985, e referências ali citadas.

(2) I.C. Moreira, C.A. Nascimento e L.R. Oliveira, “A Introdução das Idéias Newtonianas em Portugal e no Brasil”, II Simpósio Nacional de História da Ciência, Campinas, 1986.

(3) Antes de Sarmento dois outros cientistas ligados a Portugal se tornaram sócios da Royal Society: Isaac de Sequeira Samuda (1723), médico português, e Giovanni Battista Carbone (1729), astrônomo e jesuíta italiano contratado por D. João V.

(4) O título da obra é: “Proposiçoens para Imprimir as Obras Philosophicas de Francisco Baconio, Baram de Verulam, Visconde de St. Albano e Lord Chanceler de Inglaterra, digestas e reduzidas todas à língua inglesa de seos originais. Com Notas occasionaes, para aplicaçam do que he obscuro; e para mostrar, athe donde se teem posto em execuçam athe o presente tempo, os Planos do Autor, para o Aumento da Philosophia, Sciencias e Artes”.

(5) A. d’Esaguy, “Jacob de Castro Sarmento, Notas Relativas à sua Vida e à sua Obra”, Edições Ática, Lisboa, 1946.

(6) Rômulo de Carvalho, “A Física Experimental em Portugal no Século VIII”,Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, 1985.

(7) D. Gregory, “Elementa Astronomiae Physicae et Geometricae”, London, 02.

(8) H. Pemberton, “A View of Sir Isaac Newton’s Philosophy”, London, 1728.

(9) W. Gravessande, “Physices Elementa Sive Introductio ad Philosophiam Newtonianam”, 1720.

(10) J.T. Desaguliers, “A Course of Experimental Phylosophy”, London, 1734.

(11) C. McLaurin, “An Account of Sir Isaac Newton’s Philosophic Discoveries”, London, 1748.

(12) F.M.A. Voltaire, “Élements de Philosophie de Newton”, Amsterdam, 1738.

(13) L. Euler, “Lettres à une Princesse d’Allemagne”, 3 vol., 1768-1772.

(14) Não encontramos citação da Theorica em nenhum dos autores não portugueses que discutem a difusão das idéias newtonianas na Europa.

(15) Apêndice do livro “Livros e Bibliotecas no Brasil Colonial”, de R.B. Morais.

(16) Um exemplo evidente encontra-se no cônego Luis Vieira da Silva, professor de Filosofia do Seminário de Mariana, inconfidente, possuidor de uma biblioteca primorosa onde se encontravam obras as mais diversas (muitas delas proibidas) entre as quais as de divulgadores newtonianos, como a de Gravessande, e até dos “abomináveis” enciclopedistas.

(17) Utilizamos no nosso trabalho o exemplar da Theorica existente na Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Lisboa, 1990, diz-nos que possuía um exemplar de uma edição fac-similada, de que se fizeram apenas, cem exemplares, em Barcelona (1922). Não encontramos nenhum outro exemplar desta obra em Portugal e quanto à que pertenceu a Jaime Cortesão, estará provavelmente na Biblioteca Nacional, onde foi recentemente depositada a biblioteca deste ilustre historiador, mas que ainda não foi tratada.

25 Agradecemos a gentileza ao Dr. Jordi Torra, pelos elementos que nos enviou.

26 De facto 370 léguas/20 5/8 léguas = 17º, 939.

27 Tratado de Tordesilhas e Outros Documentos, obra citada, pág. 69.

28 Albuquerque, obra citada em 20, vol. i, pág. 124.

29 Navarrete, obra citada, pág. 113 e seg. O cálculo feito por Ferrer é rigoroso, pois a tangente de 11º 1/4 é 0,1989, o que dá, para à escala de 21 5/8 por grau, 3º 25´.

30 Navarrete, obra citada, ed. 1837, tomo iv, pág. 337.

31 Este aspecto foi, assim o julgamos, inicialmente levantado por Charles de Lannoy em Histoire de l’expansion Coloniale des peuples européens (Portugal et Espagne), Bruxelas, 1907, pág. 54.

Ver também Jaime Cortesão, As estipulações do Tratado de Tordesilhas, incluído na parte v, capítulo iv, das Obras Completas, Os Descobrimentos Portugueses – iii, Lisboa, 1990, pág. 710.

32 Se quiséssemos ser rigorosos devíamos reduzir os valores de 16 2/3 e 17 1/2 léguas por grau, para o paralelo em que a distância se media, isto é, para a latitude de Santo Antão, o que correspondia, respectivamente, a 15.93 e 16.73 léguas por grau. Todavia, consideramos esta redução um preciosismo dado que, na náutica, este procedimento demorou a entrar nos cálculos náuticos. O genial Pedro Nunes ainda afirmava em 1537, quando se referia às «quarteladas» que, até aos 18º de latitude boreal e austral, os graus medidos nos paralelos teriam o mesmo valor dos medidos no equador.

Na época – que saibamos – só o cosmógrafo Jaime Ferrer (vamos ocupar-nos dele mais adiante) teve a preocupação de reduzir, conforme conhecemos pelos seus escritos, o comprimento do grau ao paralelo em que estava a ser medido, quando este rigor de nada servia pois partia de um valor do grau que se afastava, significativamente, da realidade.

33 As Gavetas da Torre do Tombo, vol. ix, gav. xviii, maços 7-13, pág. 218.

34 Johannes Werner, de Nuremberga, apresentou este método, no primeiro volume da Geografia, de Ptolomeu, que editou em 1514.

35 Navarrete, obra citada, edição de 1837, vol. 336.


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