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Theorica Verdadeira das Marés (1737):
I. C. MOREIRA, C.A. NASCIMENTO, L.R. OLIVEIRA Instituto de Física, UFRJ Revista de Ensino de Física vol. 9 nº 1 Out./1987
Neste ano de 1987 comemora-se os 300 anos da publicação dos Principia de Newton; no mundo inteiro estudiosos e cientistas de várias áreas, em particular os historiadores da ciência, dedicam parte de seus esforços em busca de um entendimento mais profundo das raízes, do conteúdo e da influência da obra de Newton. Um tipo específico de estudo, onde se analisa a penetração de novas idéias em contextos culturais diversos, tem sido fonte de importantes trabalhos em anos recentes (1) e pode contribuir, ainda hoje, no entendimento de como as teorias científicas são aceitas, rejeitadas ou remodeladas. A complexidade dos fatores de ordem científica, filosófica, cultural, política, econômica, etc., que presidem essa penetração de concepções novas evidenciam a dificuldade de tal tipo de análise. Embora entre nós muito pouco tenha sido feito nessa direção, é interessante analisarmos em que medida a obra dos principais criadores da ciência moderna, em particular de Newton, influenciou a formação da mentalidade cultural no Brasil do século XVIII. A situação do Brasil, como colônia de Portugal nesta época, nos remete a um estudo mais amplo da penetração das idéias modernas (no contexto do século XVIII) em Portugal em oposição às concepções escolásticas dominantes (2). Evidentemente não temos aqui condições nem competência para analisarmos essas questões com a profundidade que merecem; no entanto, nos parece que refrescar ou recuperar, mesmo que de relance, um pouco da memória de nossa formação cultural pode contribuir para entendermos um pouco melhor os fatores que determinaram nosso atraso científico ou mesmo algumas das dificuldades que são encontradas cotidianamente no ensino, como a resistência à experimentação e concepções livrescas e elitistas do conhecimento. Com uma pretensão bem mais modesta que o expresso no parágrafo anterior, escolhemos relembrar o primeiro texto newtoniano em português como ponto de reflexão singular nesta história complexa do embate entre as idéias da ciência moderna e as escolástica-aristotélicas no século XVIII. O texto foi escrito pelo médico português Jacob de Castro Sarmento, refugiado em Londres, e publicado em 1737 com o título: Theorica Verdadeira das Marés, conforme a philosophia do incomparável cavalheiro Isaac Newton, tendo ainda o mérito de ser uma das primeiras obras de divulgação do trabalho de Newton, em particular no que se refere à explicação das marés, a vir à luz na Europa. Apresentamos a seguir um breve apanhado da vida e obra de Sarmento seguido de alguns comentários e da obra citada. A primeira vez que fêz público e eu vi e examinei com maior gosto este curiosíssimo instrumento foi nos Banhos, ou Caldas Bathonienses, noventa milhas distantes de Londres, onde o dito doutor o explicou a uma grande parte da nobreza a quem estava lendo um curso de Filosofia Experimental e Mecânica, e as demonstrações que se fazem com dita máquina tem lugar e confirmam a seguinte Teórica, quer seja o Sol que se move, quer a Terra. E ainda que no seguinte tratado vamos supondo o movimento da Terra, tanto por seguirmos o estilo do autor que comentamos, como por estar como matéria assentada entre todos os matemáticos de França, Itália, Alemanha, Inglaterra, etc., nem por isto fazemos menção dele como essencial para a Teórica seguinte, mas antes deixamos inteiramente ao arbítrio e opinião do leitor, no que respeita esta parte, o assentir ou dissentir, pois como levamos dito, a verdade e certeza da seguinte Teórica é sempre a mesma, quer seja o Sol que se move quer a Terra. O haver o grande Newton investigado e descoberto a verdadeira causa do fluxo e refluxo das águas, e depois disso o haver trazido a demonstração que a força, que causa as marés, retem também a Lua no seu Orbe, bastariam somente para fazer imortal o nome deste Filósofo ilustre, e com tudo isso tem estes uma pequena parte a respeito dos vastíssimos descobrimentos com que ilustrou o mundo, os quais só os pode inteiramente avaliar quem tem a felicidade de os entender. A sua Filosofia Experimental e demonstrativa, armada da verdade e força geométrica, tem entrado, senhor, por toda a Europa, menos Portugal e Espanha, sem encontrar a menor resistência, e como a preocupação com que os nossos portugueses retêm geralmente as idéias de Aristóteles, e alguns as de Descartes, são um gravíssimo impedimento para se difundir esta grande luz nesse reino; levado da glória dessa nação e pátria minha, e do natural impulso com que V.E. ama a matemática, escrevi este comento a propósito, pelo método mais claro e evidente, para que chegasse a todos uma idéia deste filósofo ilustre, pois pelo dedo se conhece o gigante e para que V.E. concorra (e este é o especial intento desta dedicatória) com a sua grande opinião e autoridade, para a introdução da Verdadeira Philosofia Natural, ou Newtoniana, nesse Reino, e tenha a glória, entre os mais, de fazer um tão grande serviço à Pátria. A ocasião, Excelentíssimo Senhor,não pode ser mais oportuna nem mais própria, pois necessitando essa Filosofia de um grande aparato de instrumentos para fazer as demonstrações, e, consequentemente, daquela despesa que a um particular se lhe faz dificultosa - nesse feliz Reinado, em que S. Majestade, para utilizar a seus vassalos, não faz caso dos maiores dispêndios - tem V.E. o caminho aberto para trazer à execução projeto tão louvável e tão justo. Pois é caso lastimável (nem faltam nesse Reino um e mais talentos, que se compadecem do mesmo) que, quando todas as nações da Europa se estão aproveitando do benefício que trazem à República os descobrimentos da Filosofia Newtoniana, e cada uma delas trabalhando noite e dia para descobrir outros novos, deduzidos dos mesmos Princípios, estejam os nossos portugueses, que na penetração e índole dos gênios os excedem a todos, perdendo o seu tempo e abusando da sua grande capacidade e agudeza, com uma Filosofia falsa, inútil e contenciosa. Que progressos fariam os nossos, na Filosofia verdadeira, natural e demonstrativa, e nas mais Artes, que dependem tanto dela, bem se exemplifica no primeiro Genio, que por ordem e judiciosa eleição de S. Majestade, se aplicou em Londres a esta espécie de estudo, em que no breve espaço de quinze meses de tempo, penetrou e viajou mais longe no mundo filosófico, do que em muitos anos se pode esperar de um grande engenho ( ) As artes mecânicas, como V.E. sabe, são para o público da maior vantagem, comodidade e ornamento, em qualquer domínio; e como todas elas tem a maior dependência desta filosofia, nem se podem levar a sua maior perfeição sem o conhecimento ou exercício dela e concorrer V.E. para a introdução e estabelecimento desta espécie de sabedoria, nesse Reino, é não mais que fazer o primeiro descobrimento de uma mina, de que o Príncipe e os povos tirarão a maior conveniência. E como V.E., por patrimônio de sua ilustre família, deve tomar o interesse de ambos à sua conta, razão será que V.E. represente ao Augusto Príncipe que ocupa o trono, as conveniências, que se seguem a seus vassalos, e a reputação e glória de seus Reinos, da introdução de uma filosofia, que serve e traz benefício geral a toda República ( ) ( ) O mais obrigado e o mais Humilde criado de V.E. Jacob de Castro Sarmento E é esta doutrina tão plausível e tão certa que sempre a reconheceu a sabedoria e experiência dos gregos e latinos, e a confessa a dos modernos; ainda que, o como aquelas forças produzem os seus efeitos nos corpos humanos, antes que o imortal Newton o descobrisse o ignoravam todos. E, se o gosto de saber ou a curiosidade te moverem a examinar o como, peço-te que consultes com toda a atenção e desvelo aquele pequeno, mas profundíssimo Tratado do mais famoso médico do nosso Colégio (*), De Imperio Solis, ac Lunae in Corpora Humana, et Morbis inde oriundis. Já tu sabes, leitor benévolo, o motivo que me moveu a escrever este Comento; e, se estando ausente dela, estudo mais que o meu interesse a glória da Pátria, tu, que a gozas, e é teu interesse que ela floresça, que menos podes fazer que assistir com a tua aprovação e concurso para tudo o que a pode aumentar? Aplica-te à Filosofia Newtoniana, Natural e Demonstrativa, e verás pelo tempo adiante, o benefício que colheste e o que trouxeste à República. Aos princípios desta Filosofia, ou à compreensão das forças Centrípeta e Centrífuga, deve o seu descobrimento a pasmosa fábrica de um relógio de dois pêndulos, que, com mútuo acesso e recesso, se movem num meio círculo; cuja construção e mecanismo serve de admiração aos artífices mais peritos e aos homens mais sábios; pois nem os maiores balanços de um navio lhe podem alterar o seu movimento, nem o maior grau de calor o faz ir mais apressado, nem o maior grau de frio o faz ir mais vagaroso, de maneira que, com toda a variedade de tempos, nunca tem excedido de um segundo por mês a sua diferença: circunstâncias que fazem mais que provável o conseguir-se aquele grande descobrimento da longitude por meio deste admirável instrumento; e fica seu autor a partir com ele para a Índia em um navio que nomeou a propósito o Almirantado da Inglaterra para fazer com ele os exames e prova que se necessitam, por uma Lei do Parlamento, para haver de ganhar o prêmio de quatrocentos mil cruzados, que ao descobridor se lhe tem assinado (§). Agora te pergunto, leitor sincero e desapaixonado, não seria melhor para o particular e para o público que a agudeza dos nossos grandes gênios se empregasse em uma Filosofia, que mostra aos olhos o que dita aos ouvidos e que traz estes e outros descobrimentos à República, do que fatigar-se e consumir-se com uma continuada e inútil controvérsia de Utrum detur Ens rationis, Universale a parte rei, e outras fábulas desta casta de que se compõem e está cheia da Aristotélica, indignas do juízo e atenção humana? Concorre, pois, leitor português, para essa mudança tanto de teu interesse e honra de tua pátria; promove quanto em ti estiver a introdução da Filosofia Verdadeira Newtoniana e Experimental; e se se imprimir e ensinar na nossa língua portuguesa tanto melhor, pois com isso chegará a todos a utilidade e o desejo de saber (+). E em lugar de estar uma Filosofia, inútil e falsa, nas mãos e vã soberba de poucos, sem utilidade ou serventia alguma, poderão os doutos e os vulgares trabalhar na verdadeira e serem Filósofos todos em benefício e aumento da República. Bem podes agradecer, oh! leitor benigno, ao grande talento e excelente gênio do R. P. Manoel de Campos, digno religioso da Companhia, o haver lançado os primeiros fundamentos a esta mudança e animado numa tão louvável empresa, com os seus Elementos de Geometria, que fez imprimir na nossa língua portuguesa, pois não só, depois de instruído neles como seu discípulo, te deixa qualificado para entrares na Filosofia Newtoniana a fazer o teu progresso, mas com a mesma obra te convence e manifesta que em tudo se pode falar na nossa língua, e que é da maior vantagem a qualquer nação, por mais difícil e abstrusa que seja, o escrever e ensinar toda a casta de Ciência na língua natural e própria. (*) O Dr. Ricardo Mead, primeiro médico de El Rei da Grã Bretanha e no presente médico do magnífico Hospital de St. Thomas. (§) Gastou o autor nesta obra o tempo desde o ano de 1731 até o ano de 1736. E sendo homem do campo, e o seu ofício torneiro, todas as partes de que se compõem a delicada fábrica deste relógio, assim de pau como de cobre, ferro, latão, aço, etc. foi tudo feito, temperado, polido e aperfeiçoado por sua própria mão. (+) Se as doutrinas do ilustre Newton não estivessem impressas na língua inglesa, mal poderia o inventor do sobredito relógio, que não sabe a latina, intentar um descobrimento da maior utilidade e uso para todo o gênero humano. (1) Veja, por exemplo, P.C. Abrantes, La Reception en France des Theories de Maxwell Concernant LElectricité et le Magnetisme, tese de Doutorado, Paris, 1985, e referências ali citadas. (2) I.C. Moreira, C.A. Nascimento e L.R. Oliveira, A Introdução das Idéias Newtonianas em Portugal e no Brasil, II Simpósio Nacional de História da Ciência, Campinas, 1986. (3) Antes de Sarmento dois outros cientistas ligados a Portugal se tornaram sócios da Royal Society: Isaac de Sequeira Samuda (1723), médico português, e Giovanni Battista Carbone (1729), astrônomo e jesuíta italiano contratado por D. João V. (4) O título da obra é: Proposiçoens para Imprimir as Obras Philosophicas de Francisco Baconio, Baram de Verulam, Visconde de St. Albano e Lord Chanceler de Inglaterra, digestas e reduzidas todas à língua inglesa de seos originais. Com Notas occasionaes, para aplicaçam do que he obscuro; e para mostrar, athe donde se teem posto em execuçam athe o presente tempo, os Planos do Autor, para o Aumento da Philosophia, Sciencias e Artes. (5) A. dEsaguy, Jacob de Castro Sarmento, Notas Relativas à sua Vida e à sua Obra, Edições Ática, Lisboa, 1946. (6) Rômulo de Carvalho, A Física Experimental em Portugal no Século VIII,Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, 1985. (7) D. Gregory, Elementa Astronomiae Physicae et Geometricae, London, 02. (8) H. Pemberton, A View of Sir Isaac Newtons Philosophy, London, 1728. (9) W. Gravessande, Physices Elementa Sive Introductio ad Philosophiam Newtonianam, 1720. (10) J.T. Desaguliers, A Course of Experimental Phylosophy, London, 1734. (11) C. McLaurin, An Account of Sir Isaac Newtons Philosophic Discoveries, London, 1748. (12) F.M.A. Voltaire, Élements de Philosophie de Newton, Amsterdam, 1738. (13) L. Euler, Lettres à une Princesse dAllemagne, 3 vol., 1768-1772. (14) Não encontramos citação da Theorica em nenhum dos autores não portugueses que discutem a difusão das idéias newtonianas na Europa. (15) Apêndice do livro Livros e Bibliotecas no Brasil Colonial, de R.B. Morais. (16) Um exemplo evidente encontra-se no cônego Luis Vieira da Silva, professor de Filosofia do Seminário de Mariana, inconfidente, possuidor de uma biblioteca primorosa onde se encontravam obras as mais diversas (muitas delas proibidas) entre as quais as de divulgadores newtonianos, como a de Gravessande, e até dos abomináveis enciclopedistas. (17) Utilizamos no nosso trabalho o exemplar da Theorica existente na Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Lisboa, 1990, diz-nos que possuía um exemplar de uma edição fac-similada, de que se fizeram apenas, cem exemplares, em Barcelona (1922). Não encontramos nenhum outro exemplar desta obra em Portugal e quanto à que pertenceu a Jaime Cortesão, estará provavelmente na Biblioteca Nacional, onde foi recentemente depositada a biblioteca deste ilustre historiador, mas que ainda não foi tratada. 25 Agradecemos a gentileza ao Dr. Jordi Torra, pelos elementos que nos enviou. 26 De facto 370 léguas/20 5/8 léguas = 17º, 939. 27 Tratado de Tordesilhas e Outros Documentos, obra citada, pág. 69. 28 Albuquerque, obra citada em 20, vol. i, pág. 124. 29 Navarrete, obra citada, pág. 113 e seg. O cálculo feito por Ferrer é rigoroso, pois a tangente de 11º 1/4 é 0,1989, o que dá, para à escala de 21 5/8 por grau, 3º 25´. 30 Navarrete, obra citada, ed. 1837, tomo iv, pág. 337. 31 Este aspecto foi, assim o julgamos, inicialmente levantado por Charles de Lannoy em Histoire de lexpansion Coloniale des peuples européens (Portugal et Espagne), Bruxelas, 1907, pág. 54. Ver também Jaime Cortesão, As estipulações do Tratado de Tordesilhas, incluído na parte v, capítulo iv, das Obras Completas, Os Descobrimentos Portugueses iii, Lisboa, 1990, pág. 710. 32 Se quiséssemos ser rigorosos devíamos reduzir os valores de 16 2/3 e 17 1/2 léguas por grau, para o paralelo em que a distância se media, isto é, para a latitude de Santo Antão, o que correspondia, respectivamente, a 15.93 e 16.73 léguas por grau. Todavia, consideramos esta redução um preciosismo dado que, na náutica, este procedimento demorou a entrar nos cálculos náuticos. O genial Pedro Nunes ainda afirmava em 1537, quando se referia às «quarteladas» que, até aos 18º de latitude boreal e austral, os graus medidos nos paralelos teriam o mesmo valor dos medidos no equador.
Na época que saibamos só o cosmógrafo Jaime Ferrer (vamos ocupar-nos dele mais adiante) teve a preocupação de reduzir, conforme conhecemos pelos seus escritos, o comprimento do grau ao paralelo em que estava a ser medido, quando este rigor de nada servia pois partia de um valor do grau que se afastava, significativamente, da realidade.
33 As Gavetas da Torre do Tombo, vol. ix, gav. xviii, maços 7-13, pág. 218.
34 Johannes Werner, de Nuremberga, apresentou este método, no primeiro volume da Geografia, de Ptolomeu, que editou em 1514.
35 Navarrete, obra citada, edição de 1837, vol. 336.
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