O Lume Vivo que a Marítima gente tem por Santo

O FENÓMENO ATMOSFÉRICO MAGNIFICAMENTE DESCRITO POR CAMÕES N'OS LUSÍADAS SÓ TEVE UMA EXPLICAÇÃO CIENTÍFICA NO SÉCULO XVIII


Clique na imagem para a ampliar
"Santelmo Socorrendo os Náufragos", óleo de cerca de 1714 existente na capela do Palácio do Corpo Santo, em Setúbal. Note-se o arco-íris, correctamente colorido, e a vela na mão do santo.

A nau S. Filipe tinha saído de Lisboa em 1586. Tinha dobrado o cabo e entrado no oceano Índico. Alijara as velas, porque o vento era muito forte e a tempestade tornara-se muito violenta. Estava-se já na noite do segundo dia da borrasca e muitos desesperavam da salvação quando «apareceu o Corpo Santo em a verga do mastro grande, em figura de uma faísca de fogo, muito clara e resplandecente, e dali, à vista de todos, se foi pôr sobre o mastro da mezena, onde o salvou o piloto da nau, da cadeira em que estava governando, dizendo: Salvé, Corpo Santo, salvé: boa viagem, boa viagem. E toda a mais gente da nau, que presente estava, respondeu da mesma maneira: Boa viagem, boa viagem, com muitas lágrimas de alegria. Neste lugar esteve esta luz resplandecente um grande espaço de tempo e dali desapareceu à vista de todos.»

O relato desta viagem tormentosa aparece na «Etiópia Oriental», de Frei João dos Santos . Mas muitas outras narrativas de viagem descrevem semelhantes luminosidades feéricas nos mastros dos navios.

Nos começos da era cristã, os navegadores do Mediterrâneo viam neste lume misterioso o sinal da intervenção do Corpo Santo ou de Santo Erasmo, também conhecido por Santo Elmo ou Sant’Elmo. Trata-se de uma referência a um bispo italiano assassinado em 303 d.C. por esventramento. Esse mártir cristão, vítima das perseguições do imperador Diocleciano, seria depois santificado e tomado como protector dos navegantes.

Nos tempos das Descobertas, os marinheiros portugueses e espanhóis, tomariam como protector outro santo da Igreja Católica, um frade dominicano de nome Pero Gonçalves. Nascido na vila de Fromista, Castela-a-Velha, falecido e sepultado cerca de 1246 em Tui, nessa época sob jurisdição portuguesa, Pero Gonçalves teria repetido no rio Minho o milagre dos peixes e tornar-se-ia também protector dos navegantes. Com os anos, as lendas fundiram-se, e o nome «Telmo» foi-lhe justaposto. Nos fins do século XVI falava-se em Pero Gonçalves Telmo, como se sempre tivesse sido esse o seu nome.

As referências literárias e populares são muitas e inequívocas, tais como o são muitos relatos de viagens posteriores, incluindo o do célebre périplo de Darwin: em momentos de tempestade, os marinheiros viam muitas vezes no topo dos mastros uma luminosidade feérica, frequentemente bifurcada, a que se seguia muitas vezes o amainar da tempestade.

Os relatos referem-se a um fenómeno verdadeiro, hoje chamado fogo-de-santelmo ou, na terminologia científica, coroa ou descarga de ponta. Por vezes, uma luminosidade semelhante aparece em terra, nos topos de edifícios, ou mesmo nos cornos de animais ou nos cumes das montanhas. Foram as experiências de Benjamin Franklin (1706–1790) com os seus papagaios de papel lançados no meio das tempestades e com os pára-raios que começaram a lançar luz sobre a natureza eléctrica do fenómeno, mas foi preciso esperar pelo século XX e a mecânica quântica para se perceber exactamente a natureza do fogo-de-santelmo.

Normalmente, a atmosfera está carregada com um campo eléctrico de cerca de um volt por centímetro. Quando a atmosfera está tempestuosa, esse campo aumenta para cerca de cinco volts por centímetro e, mesmo antes de um relâmpago, atinge 10 mil volts por centímetro. Nessa altura, o potencial é suficiente para vencer a resistência do ar e produz-se uma descarga, sob a forma de relâmpago. Em algumas situações, nomeadamente no fim de uma tempestade, o potencial mantém-se em níveis intermédios e observa-se uma luminosidade nos topos salientes.

Se um objecto de 10 metros, por exemplo um mastro de um navio, fosse um condutor perfeito, manteria no topo o mesmo potencial que na base, pois estaria ligado à terra, como se diz. Com um decréscimo de potencial atmosférico de cinco volts por centímetro, o topo desse mastro atingiria um potencial 5000 volts mais elevado que o do ar circundante. Na realidade, o mastro não é um condutor perfeito, mas molhado pela água da tempestade e salgado pelas ondas é um condutor muito melhor do que a atmosfera. A diferença de potencial pode atingir, por exemplo, 1000 volts. Nessa altura, as moléculas do ar que rodeiam o topo do mastro soltam os seus electrões, são ionizadas, como se diz. As colisões entre as partículas tornam-se mais frequentes e os electrões, ao saltarem de uma camada para outra de mais baixo potencial, libertam energia sob forma de fotões. Produz-se uma luminosidade branca e azulada. É o «lume vivo que a marítima gente tem por santo».

Nuno Crato


© Instituto Camões 2003