Os Nomes Portugueses de Al-Khuarizmi

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Os algarismos ditos árabes constituem a contribuição mais conhecida dos islamitas para o progresso da matemática europeia. Os novos símbolos e o sistema de numeração que lhes está associado e que ainda hoje se utiliza são, na realidade, de origem hindu, mas foram os árabes que os trouxeram para o Ocidente e que primeiramente aqui os usaram e dominaram.

O primeiro livro árabe que se conhece sobre o novo sistema de numeração é o Livro sobre a Adição e Subtracção Segundo o Método dos Indianos. O seu autor foi Muhammad iben Muça al-Khuarizmi (c. 780–850), matemático de origem persa que foi um dos primeiros membros da Casa da Sabedoria (Bait al-Hikma), centro de investigação fundado em Bagdade pelo califa al-Mamun (gov. 813–833). No seu livro, al-Khuarizmi explica como se pode escrever qualquer número com o novo sistema e como se podem efectuar as quatro operações aritméticas sobre essa representação.

Apareceram depois muitas outras obras com o desenvolvimento dos métodos de cálculo baseados no sistema de posição decimal. Só no princípio do século XV, com Ghiiath al-Din Jamshid al-Kashi (m. 1429), se pode dizer que o sistema decimal de posição ficou completo, incorporando as fracções decimais na representação dos números e nos algoritmos. Multiplicar três e um quinto por dois e meio décimo passou a poder escrever-se como a multiplicação de 3,2 por 2,05 e a efectuar-se com o algoritmo escrito que hoje conhecemos. Apesar de os algarismos árabes terem sido usados ocasionalmente pelos europeus desde o século XIV, o novo sistema de al-Kashi só em 1562 apareceu em Itália e só no princípio do século XVII começou a generalizar-se na Europa, incluindo Portugal. Ainda nesse século, no entanto, o sistema era visto com alguma desconfiança, conforme o atesta uma declaração dos provedores da Fazenda de Lisboa em 1633:

se não pode dar crédito ao caderno que veio das ditas despesas da Índia por virem em algarismo [1]

Ao mesmo tempo que faziam progressos na Aritmética, os matemáticos muçulmanos dedicavam-se à Álgebra, entendida como o estudo e solução de equações. De tal forma foi importante a sua contribuição que a própria palavra «álgebra» tem origem num termo árabe, «al-jabr», incluído no título de uma outra obra de al-Khuarizmi, e que se pode traduzir como «restauração» ou «reconstrução». Tratava-se da adição a ambos os lados de uma equação da mesma quantidade, técnica basilar da simplificação de equações.

Os trabalhos de al-Khuarizmi foram fonte de muitos termos matemáticos que se generalizaram no Ocidente. O seu nome foi traduzido em latim como «Algorismi» ou «Algaritmi» e aparece em textos ibéricos medievais na forma «Alohorismi». Desses nomes resultou o termo «algoritmo», que designa um procedimento sistemático para resolver um problema, habitualmente numérico (e.g., o algoritmo da divisão).

Em português o nome do matemático árabe originou também o termo «algarismo», usado para designar os sinais gráficos numéricos (0,1,..., 9). Com esta acepção, o termo aparece já, por exemplo, na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Em castelhano usou-se «alguarismo», com o mesmo sentido, mas esse termo caiu em desuso, originando «guarismo», que ainda hoje se usa.

O livro do matemático árabe é também responsável pela introdução no Ocidente de dois outros termos, ambos derivados da palavra «çifr», adaptada do hindu «sunia», que significa «vazio». Através da latinização «zephirum», este termo originou o nosso «zero», que aparece bastante tarde. De «çifr» gerou-se ainda o termo «cifra», que em português significava também zero e que na nossa língua hoje designa quantidade, cálculo ou sinal convencional.

Al-Khuarizmi foi um dos primeiros matemáticos árabes, mas não foi um dos mais criativos. A sua maior fama e influência deve-se ao facto de ter sido um precursor e, portanto, uma figura de referência. Em português o seu trabalho perpetua-se através de vários termos, tal como acontece noutros países. Mas na nossa língua sobrevive singularmente com a palavra algarismo, que não tem uso semelhante noutras línguas europeias.

[1] Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios, Lisboa, Sá da Costa, 1978, vol. II, p. 55.


Nuno Crato


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