As observações de Couplet na Paraíba em 1698


Em 1698, Pierre Couplet (~1670, 1743), membro da Academia de Ciências e do Observatório de Paris, realizou uma expedição a Portugal e ao Brasil para fazer medidas físicas e astronômicas. Seu objetivo principal era verificar o comportamento do relógio de pêndulo nas vizinhanças do equador. Como Galileu já havia mostrado, o quadrado do período do pêndulo varia com o inverso da aceleração gravitacional. Por isso, o pêndulo passou a ser usado, em experiências realizadas em vários pontos da Terra, para se medir a variação da aceleração gravitacional com a latitude.

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Fig 1 - Frontispício da primeira edição da obra fundamental, os Principia de Isaac Newton, publicada em 1687.

Essa questão teve na época uma grande importância por permitir a confrontação experimental de dois grandes sistemas provenientes da física. Para Newton, a Terra deveria ser achatada nos pólos, em razão da sua lei de atração gravitacional e da aceleração centrífuga resultante da rotação da Terra. Já no modelo cartesiano a Terra seria alongada nos pólos, tendo forma similar a um melão. Segundo a teoria newtoniana, um pêndulo que batesse o segundo em Paris sofreria um atraso mensurável, quando fosse levado para as proximidades do equador. Esse atraso seria proveniente da diminuição da aceleração gravitacional, ocasionada pela maior distância do equador ao centro da Terra (em relação aos pólos), e do efeito da aceleração centrífuga (este efeito sendo bem menor que o primeiro).

No volume III dos seus Philosophiae naturalis principia mathematica, na edição de 1713, Newton cita algumas medidas que corroboram suas previsões e que contrariam as afirmações dos cartesianos. Entre elas, as experiências realizadas, em 1672, por Jean Richer, em Caiena, e aquelas efetuadas por Couplet, na Paraíba, em 1698. Essa expedição de Couplet guarda, portanto, um interesse particular do ponto de vista da história da ciência no Brasil, por ser, juntamente com as observações de cometas realizadas pelo padre Valentim Stansel, na Bahia, em meados do século XVII, um dos únicos experimentos ocorridos no Brasil a serem citados em uma das obras mais importantes da história da ciência, os Principia.

Apresentamos a tradução do artigo de Couplet com os resultados de suas medidas. O texto é um extrato de algumas cartas a Bignon e a Cassini enviadas durante a viagem de Couplet, já que, em seu retorno à França, ele sofreu um naufrágio e perdeu todas os resultados de suas observações, além de todo o material de história natural que havia recolhido no Brasil.



EXTRATO DE ALGUMAS CARTAS ESCRITAS DE PORTUGAL E DO BRASIL, PELO SR. COUPLET, O FILHO, PARA O SR. ABADE BIGNON, PRESIDENTE DA ACADEMIA REAL DE CIÊNCIAS.

Pierre Couplet, Mémoires de la Academie Royale des Sciences, pp. 171-178, Paris, 1700.


Fui recebido na Academia Real de Ciências ainda muito jovem e, depois de ter assistido às assembléias durante alguns anos, achei que não devia adiar por mais tempo a execução do desejo que tinha de viajar, para não ter de interromper o curso de meus estudos no futuro, quando estivesse com uma idade mais avançada. Meu primeiro pensamento foi o de ir às Índias Orientais para fazer observações dos satélites de Júpiter na determinação das longitudes. Mas, sabendo que os padres jesuítas tinham sido enviados ao Oriente, pelo Rei, e ali feito um número considerável de observações - que nos dão um conhecimento bastante perfeito dos principais pontos de longitude dessa parte do mundo - e que, ao contrário, muito pouco tinha sido feito do lado das Índias Ocidentais, pensei que uma viagem para o Ocidente poderia ser mais útil para o progresso da geografia. Aproveitei a oportunidade da partida do sr. Presidente Rouille, que ia em embaixada a Portugal, para ir a Lisboa com ele. Permaneci aí algum tempo para aprender a língua, imaginando que ela não deixaria de ser útil em minha viagem às Índias.

Em seguida, tendo encontrado uma ocasião para ir ao Brasil, aí fui e passei mais de três meses, tanto na Paraíba como em Olinda e Pernambuco, de onde, depois de ter feito uma certa quantidade de observações de geografia, de física e de astronomia, voltei a Portugal. De lá, meus afazeres domésticos tendo me chamado à França, após dois anos e meio de ausência, tive a infelicidade de naufragar nas costas da Picardia, em 25 de novembro de 1699. Só pude escapar desse naufrágio com muito sacrifício depois de ver desaparecer, na véspera, todo meu equipamento, meus livros, meus instrumentos de matemática e, até mesmo, minhas memórias e as curiosidades que havia recolhido com bastante cuidado e esforço e dos quais nada pude salvar. Só me restam, portanto, de todas essas observações, aquelas que pude tirar de algumas cartas que tinha escrito ao sr. Bignon e ao sr. Cassini no curso de minha viagem.


Longitude de Lisboa

Entre as várias observações dos satélites de Júpiter que fiz em Lisboa, no ano de 1698, se encontra uma que foi observada paralelamente no Observatório Real, em Paris, pelo sr. Cassini. Foi a imersão do primeiro satélite na sombra de Júpiter. Ela ocorreu no dia 7 de maio de 1698, como assinalo mais abaixo.

É bom observar antes que eu me coloquei sobre o Monte Santa Catarina, situado ao Sul-Sul-Oeste da cidade, em um lugar cômodo para esse tipo de observações, que estava perfeitamente seguro do estado de minha pêndula e que fiz minha observação com uma luneta de 17 pés de base, precisamente com a mesma força daquela que o sr. Cassini se servia em Paris para a sua [observação].

No dia 7 de maior de 1698 foi observada a imersão total do primeiro satélite na sombra de Júpiter: em Paris às 11 horas 9’ 21” da noite; em Lisboa às 10 horas 17’ 30”. A diferença dos meridianos é, então: 0 horas 51’ 51”. Isso implica que Lisboa é mais oriental que Paris em 12 graus 57’ 45”. Supondo que a longitude de Paris tenha 21 graus apenas, como há fortes suposições para fazê-lo, a de Lisboa será de 8 graus 2’ 15”.

Essa diferença de meridianos entre Paris e Lisboa é bem maior nas Cartas de Sanson, que, há 30 anos, são consideradas como as melhores sem a menor dúvida. Lisboa aparece aí mais ocidental ainda que pelas nossas observações de 52 minutos 15 segundos de graus, que valem 16 a 17 milhas neste paralelo.

Ao contrário, as novas Cartas Marinhas impressas por ordem do Rei, seis anos atrás, fazem Lisboa menos ocidental que nossas observações por 27’ 45” de graus que valem mais de 9 milhas. Assim a distância entre os meridianos de Paris e de Lisboa, marcada nas novas Cartas Marinhas, é diferente daquelas das Cartas de Sanson por um grau e vinte minutos; esse valor é considerável, sendo mais de um décimo da verdadeira distância, que resulta de nossas observações.


Latitude de Lisboa

No que concerne à latitude: como ela se observa bastante facilmente, não é tão difícil se enganar, desde que disponhamos de instrumentos de uma dimensão razoável. As observações que fiz da latitude de Lisboa servirão para confirmar aquela que está marcada nas novas Cartas Marinhas. No que se refere à latitude de Lisboa, marcada por Sanson na carta particular de Portugal do ano 1654 com o valor 38 graus 27’, ela está tão distante de verdade que não creio que pessoa alguma possa se enganar sobre isto; também em uma Carta Geral de Espanha que fez depois, ele a aumentou de chofre de um valor de 23 minutos.

Observei a Estrela Polar no fim de dezembro de 1697, com um instrumento de um pé e meio de raio munido de lunetas com des fils (?), e encontrei os seguintes resultados em Lisboa:

A maior altura meridional da Estrela Polar 41º 5’ 40”

O maior abaixamento da mesma: 36º 28’ 0”

A diferença das duas alturas é: 4º 37’ 40”

A metade deste diferença é: 2º 18’ 50”.

Adicionando essa semi-diferença com a menor altura da Estrela Polar, teremos para a altura aparente do pólo: 38º 46’ 50”. Daí, retirando a refração conveniente, de 0º 1’ 25”, restará para a altura verdadeira do pólo em Lisboa: 38º 45’ 25”.


Declinação do ímã em Lisboa

No dia 26, do mesmo mês de dezembro de 1697, observei em Lisboa a declinação de uma agulha magnética de seis polegadas de comprimento, por meio de uma linha meridiana que tracei alguns dias antes, com bastante exatidão, e encontrei 4 graus, 18 minutos Norte-Oeste.


Diferença do comprimento do pêndulo em Lisboa e em Paris

Antes de partir de Paris, havia regulado meu relógio no Observatório Real, no mês de julho e no começo de agosto de 1697. Eu o havia colocado de acordo com o movimento médio [do Sol], no qual ele gastou um tempo bastante considerável antes que eu estivesse seguro da regulagem. Tendo-o deixado no mesmo estado, coloquei-o em movimento em Lisboa, no mês de novembro seguinte, e observei que retardava 2’13” em 24 horas. Eu havia experimentado que, ao se elevar o pequeno peso de quanto que ele podia subir, o movimento do pêndulo não se acelerava mais do que um minuto inteiro, o que era insuficiente. Por isso decidi encurtar o pêndulo, e depois de várias tentativas, percebi que o pêndulo do relógio devia ser mais curto em Lisboa do que em Paris por uma diferença de duas linhas e meia.


Latitude da Paraíba

Como o céu estava coberto, gastei mais de um mês para regular meu relógio, porque foi necessário um grande número de observações para obter o comprimento do pêndulo. Durante esse tempo medi muitas vezes a altura do Sol, de onde concluí que essa vila está a 6 graus 58’ 18” de latitude meridional.


Declinação do ímã na Paraíba

No dia 20 de maio de 1698, tendo antes traçado cuidadosamente uma linha meridiana, da qual me servi para as observações astronômicas, observei a declinação da agulha imantada: 5º 35’ Norte-Leste.


Diferença do comprimento do pêndulo na Paraíba e em Paris

Quando cheguei à Paraíba, no mês de março de 1698, meu primeiro cuidado foi o de regular meu relógio e colocá-lo exatamente de acordo com o movimento médio, tanto para conhecer a diferença do comprimento do pêndulo, como para me preparar para fazer as observações dos satélites de Júpiter e determinar a longitude desta vila. De início, coloquei meu pêndulo no estado em que ele se encontrava quando parti de Paris, e o movimentei; descobri que atrasava, de seu movimento médio, 4 min 12 s a cada 24 horas. Encurtei, portanto, o pêndulo várias vezes e, após regulá-lo em relação ao movimento médio, achei que devia ser mais curto na Paraíba do que em Paris por uma diferença de 3 linhas e dois terços.

Em seguida, coloquei o mesmo pêndulo no estado em que estava quando me servi dele para fazer minhas observações em Lisboa, onde eu o havia regulado pelo movimento médio, e observei que nesse estado ele retardava na Paraíba de 2’ 5” em 24 horas.

Embora a diferença que se encontra entre os dois pêndulos de segundo tomados na Paraíba e em Paris seja apenas, como acabamos de assinalar, de 3 linhas 2/3 (o que não é considerável em relação a um comprimento de 3 a 4 pés, tal como é o comprimento dos pêndulos que comparamos) ela não deixaria de levar, no entanto, a um erro sensível (como é fácil de ver, porque sabemos que os tempos empregados nas vibrações dos pêndulos estão entre eles como as raízes de suas alturas). Daí se vê que, se utilizássemos na Paraíba o pêndulo de segundos tal como em Paris, ou seja com 3 pés 8 linhas 1/2 (ao invés de 3 pés 4 linhas 5/6, que ele deveria ter nesse lugar do Brasil para bater os segundos), então seu movimento seria retardado, de tal maneira que, no intervalo de uma hora, não daria mais que 3585 oscilações ao invés de 3600, que ele dá em Paris. Isso é próximo de 15” de diferença por hora. Do mesmo modo que, inversamente, se o pêndulo de segundos da Paraíba, ou seja de 3 pés 8 linhas 1/2 fosse colocado em movimento em Paris, ele aceleraria e daria 3615 vibrações em uma hora, ao invés de 3600 somente que ele dá na Paraíba.

Essas observações, juntamente com aquelas que têm sido feitas nesse assunto por muitos sábios, confirmam suficientemente que, quanto mais nos aproximamos do equador, mais se deve encurtar o pêndulo. Mas a razão que há entre esses encurtamentos diversos, que não seguem a proporção das diferentes latitudes aos quais se referem, nos é desconhecida no presente, embora muitos físicos hábeis a tenham tentado nos explicar. Para se conseguir isso, falta ainda um grande número de observações sobre esse assunto que, consideradas todas em conjunto e por suas numerosas comparações, possam nos descobrir a causa verdadeira que tem sido buscada há longo tempo.

A atenção que se deve dar a conhecer o comprimento verdadeiro do pêndulo próprio para o lugar onde ele é observado, não se limita às observações astronômicas, mas é ainda essencial em uma infinidade de coisas, como por exemplo no calibre das águas correntes, onde na prática o pêndulo simples é ordinariamente usado, - pêndulo este cujo comprimento se mede, como se sabe, a partir do centro da bala até o ponto de suspensão. Esse comprimento do pêndulo próprio para o lugar onde se faz as observações, deve ser medido com precisão, porque um fonte que, por exemplo, forneça em Paris 3600 polegadas de água em uma hora de tempo, determinado por meio do pêndulo de comprimento verdadeiro, ou seja, de 3 pés 8 linhas 1/2, parecerá fornecer 3615 polegadas, se a gente se servisse do pêndulo de 3 pés 4 linhas 5/6, tal como é necessário na Paraíba, e assim teríamos um erro de 15 polegadas no escoamento para cada hora.

Não posso lançar meus olhos sobre essas observações astronômicas que fiz na Paraíba, sem me lembrar de um acidente que me aconteceu na mesma época. Como acredito que nenhum autor jamais tenha falado de coisa semelhante, será razoável fazê-lo aqui. Existe no Brasil uma espécie de serpente, com cerca de dois pés de comprimento e com três a quatro polegadas de perímetro, que os portugueses chamam de cobra de duas cabeças, não porque elas tenham efetivamente duas cabeças, como descobri depois de tê-la examinado com cuidado, mas somente uma protuberância, no final da cauda, que de longe assemelha-se a uma cabeça. Os brasileiros ou mazombas, e depois deles os portugueses, tomaram-na por uma cabeça tanto mais facilmente porque têm um temor extremo dessa espécie de cobra, pretendendo que não haja remédio para sua picada. Eles sabem que é perigoso tocá-la mesmo após sua morte, e é isso que aparentemente os têm impedido de examiná-la. Advertiram-me que o mero contato produziria intumescências; negligenciei um conselho tão salutar, que tomei como resultado de seu temor, mas fui punido em minha temeridade. Porque tendo matado várias dessas cobras, esfolei-as para examiná-las e para conservar suas peles; e dois ou três dias depois me vi efetivamente todo recoberto de pústulas cheias de água avermelhada. Elas duraram um longo tempo, e mesmo três meses depois eu não estava ainda inteiramente bom.

Existem no país cobras de uma grossura extraordinária, tendo eu matado uma delas, com um tiro de fuzil, nas matas entre a Paraíba e Pernambuco, que tinha mais de 15 pés de comprimento e 16 a 18 polegadas de grossura. Ela era coberta de escamas negras, brancas, cinzentas e amarelas, que, em conjunto, produziam um efeito muito bonito. A picada dessas cobras é venenosa; no entanto, os brasileiros e os negros não têm nenhum dificuldade em comer sua carne. Isso não deve parecer mais estranho do que o que se oberva com a mandioca, cuja farinha é o alimento mais comum no Brasil, e cujo suco é um veneno, como experimentei com um cachorro a quem fiz beber meio copo da poção, cerca de oito horas da noite. Observei-o durante algum tempo sem notar nele nenhum alteração perceptível; prendi-o durante a noite e, na manhã seguinte, encontrei-o morto. Fiz uma infinidade de outras observações físicas que foram perdidas com minhas memórias quando naufraguei.



Referências

1. Sur la longuer du pendule, B. Fontenelle, Histoire de l’Academie Royale des Sciences, Paris, p. 116-120, 1700.

2. A expedição de Couplet à Paraíba - 1698, I. C. Moreira, Rev. Soc. Bras. História da Ciência 5, p. 23-31, 1991.

3. Mathematical principles of natural philosophy, I. Newton, Book 3, The sytem of the world, University of California Press, 1962.

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