Acúrsio das Neves (1766-1834)

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Frontispício da Memória sobre os Meios de Melhorar a Indústria Portuguesa, de 1820.

José Acúrsio das Neves nasceu em 14 de Dezembro de 1766, em Cavaleiros de Basto, concelho de Fajão, distrito de Coimbra. Em 1782 matriculou-se na Faculdade de Leis da Universidade de Coimbra, tendo concluído o curso em 1787. Iniciou então uma carreira na magistratura. Em 1794 publicou a sua primeira obra, um elogio ao presidente do tribunal da Mesa do Desembargo do Paço, Luís de Vasconcelos. Em 1795 foi enviado para a cidade de Angra, como Juiz de Fora, de 1795 a 1799 e depois como Corregedor, de 1799 a 1802.

Após ter terminado as suas funções de corregedor nos Açores, casou com Delfina Maria das Neves, uma senhora rica e viúva de um seu tio. Regressou ao continente em 1807, tendo assistido em Lisboa à partida da corte para o Brasil, na altura da primeira vaga de invasões francesas. Quando se formou a Junta Provisória do Porto retirou-se para a Beira, onde iniciou a redacção de 12 opúsculos, que viria a intitular de Obras Patrióticas, destinados a promover a reacção das populações contra os invasores.

Em 1810 foi nomeado por D. João VI para Desembargador da Relação do Porto, ocupando ainda o lugar de Deputado e Secretário da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, de Deputado da direcção da Real Fábrica de Sedas e Obra das Águas Livres, e Deputado da Junta de Liquidação dos Fundos da Extinta Companhia do Pará e Maranhão. Foi entretanto agraciado com as Ordens de Cristo e de Nossa Senhora da Conceição. Publicou a sua primeira grande obra, a História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal, e da Restauração deste Reino (5 volumes) em 1810 e 1811. A partir de 1814 começou a publicar Variedades sobre objectos relativos às artes, comércio e manufacturas, considerados segundo os princípios de Economia Política (2 vols.). No âmbito da Junta do Comércio defendeu, em 1818 e 1820, a utilização da máquina a vapor, procurando contribuir para o melhoramento da estrutura produtiva do país.

Com a revolução liberal de 24 de Agosto de 1820 iniciou um intenso trabalho de luta política e ideológica, publicando diversas obras entre 1821 e 1824. Em 1821 foi demitido dos principais cargos que ocupava. Foi eleito deputado às Cortes de 1822 por Arganil. Na sequência da Vilafrancada (movimento contra-revolucionário desencadeado a 27 de Maio de 1823), foi readmitido na Junta do Comércio, de onde viria a ser demitido de novo em 1824, sendo preso como suspeito de participação na Abrilada (movimento contra-revolucionário desencadeado pelo infante D. Miguel em 29 de Abril de 1824). Em 1826, após a morte de D. João VI, foi readmitido nos seus cargos, publicando os Entretenimentos Cosmológicos, Geográficos e Históricos (1826) e as Noções Históricas, Económicas e Administrativas sobre a produção e manufactura das Sedas em Portugal e particularmente sobre a Real Fábrica do subúrbio do Rato e suas anexas (1827).

Em 1828 viria a ser nomeado Procurador Letrado da Cidade de Lisboa na Junta dos Três Estados, ficando politicamente associado ao governo absolutista de D. Miguel. Publicou a sua última obra em 1830, as Considerações Políticas e Comerciais sobre os Descobrimentos e Possessões dos Portugueses em África e na Ásia. Em 1833, durante a guerra civil entre liberais e absolutistas, que decorreu de 1832 a 1344, abandonou a cidade de Lisboa, devido a um surto de cólera. Passou algum tempo nas Caldas da Rainha, onde redigiu o boletim do exército de D. Miguel. Fixou depois residência em Sarzedo, Arganil, onde viria a morrer em 6 de Maio de 1834, sozinho e abandonado, num palheiro onde se refugiava das perseguições que eram movidas contra os partidários de D. Miguel.


O Pensamento Económico de José Acúrsio das Neves

Acúrsio das Neves foi autor de uma obra vasta e diversificada, tendo escrito textos políticos e históricos, entre os quais se destacam a História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal, e da Restauração Deste Reino (1811) e Cartas de Um Cidadão Português a seus Considadãos sobre Diferentes Objectos de Utilidade Geral e Individual (1822).

Os textos mais importantes dizem respeito à Economia. Acúrsio das Neves era um reformista, que defendia o fortalecimento do aparelho do Estado e a criação de estruturas que permitissem um desenvolvimento apoiado do desenvolvimento da agricultura e da indústria. Apontado normalmente como um absolutista, Acúrsio das Neves foi, na realidade, um apoiante da orientação política de D. Miguel, que tentou recuperar o regime absolutista em Portugal. No entanto, do ponto de vista económico alinhou com as teorias dos economistas liberais seus contemporâneos.

António Almodovar considera que existem duas linhas de força no pensamento de Acúrsio das Neves: a afirmação da necessidade de efectuar reformas de forma a garantir a sobrevivência das sociedades, e a necessidade de impedir que essas reformas tenham custos sociais desnecessários e excessivos. (V. António Almodovar, “O Pensamento Político-Económico de José Acúrsio das Neves. Uma Proposta de Leitura”, in Obras Completas de José Acúrsio das Neves, vol. 1,  p. 33)

“A indústria é somente quem pode salvar-nos, porque só ela dá a riqueza, base principal da força, e prosperidade dos povos. Mas a indústria não fortifica senão auxiliada por um bom Governo, e em um terreno livre de obstáculos, e convenientemente preparado por meio de instituições sábias, e reformas bem meditadas. A falta destas é a que limita o génio nacional…” (Memória de 1820, p. 7)

Na linha de Adam Smith ((1723-1790), considerava que era necessário estimular a indústria privada, sendo que esta só existiria pelo respeito da propriedade privada. Defendia a necessidade de estimular a actividade económica em geral. Propunha como essencial para que se atingisse esse objectivo a criação de associações literárias e económicas e a criação de bibliotecas públicas. Considerava essencial a divulgação dos conhecimentos científicos, e tecnológicos e considerava que se impunha a criação de sociedades/associações que complementassem a acção teórica da Universidade de Coimbra e da Academia das Ciências. Desta forma promover-se-iam “as aplicações práticas, propagadas de tal modo com os princípios elementares, que penetrem até às aldeias, e aos campos, onde devem ter o exercício.” (Variedades, t. II, 306-307)

Para além de Adam Smith, Acúrsio das Neves seguia os princípios de economia política de Jean-Baptiste Say (1767-1832) e J. - C. L. Sismondi (1773-1842), bem como do português Duarte Ribeiro de Macedo (1618-?).

A sua obra insere-se num esforço de industrialização com sinais bem visíveis entre 1814 e 1823, período em que o número de estabelecimentos industriais quase duplicou, no mesmo momento em que foram introduzidas em Portugal as primeiras máquinas a vapor. Acúrsio das Neves foi o principal doutrinador deste impulso industrial, opondo-se, por um lado, aos que pretendiam reduzir o país a uma economia agrícola (fisiocratas), e por outro, aos mercantilistas, que encaravam a moeda como base da riqueza de uma nação. Defendia a aplicação de um proteccionismo moderado, com a defesa da produção nacional relativamente à concorrência estrangeira, especialmente a inglesa. Defendia ainda a livre circulação de produtos em todo o país, e a abolição dos morgados, melhor repartição da propriedade rural, redução ou eliminação das rendas sobre os agricultores, aproveitamento de terras incultas e investimentos na agricultura. Muitas destas medidas viriam a ser postas em prática pela política de Mouzinho da Silveira (1780-1849) em 1832.

Defendia a criação de aulas de Economia Política, maior liberdade de imprensa, e a regulação das rendas do Estado. Esta última vertente implicava, na sua perspectiva, a protecção das fontes tradicionais de rendimentos do Estado e o seu desenvolvimento, e ainda a criação de novas fontes de rendimento, através da criação e desenvolvimento apoiado de um conjunto de actividades, desenvolvidas por indivíduos oriundos das várias ordens, sem quaisquer privilégios, e por isso tributáveis.

A criação de um Estado moderno, implicava que os seus funcionários tivessem uma formação adequada, conhecendo bem os princípios da Economia Política.

Ainda segundo Almodovar, o pensamento económico de Acúrsio das Neves e dos reformistas distingue-se tanto dos liberais como dos tradicionalistas:

“para os primeiros, a sociedade civil economicamente «liberalizada» é uma necessidade decorrente das necessidades do Estado; para os segundos, o Estado é uma necessidade decorrente das necessidades da sociedade civil, pelo que só controlando e «liberalizando» o Estado podem atingir o seu objectivo basilar de liberalizar a sociedade civil; para os terceiros, a questão fundamental era a de evitar a todo o custo a separação entre o Estado e a sociedade civil, procurando para tal dissolver esse Estado de novo nas ordens, nos seus privilégios e nas suas hierarquias.” (Almodovar, pp. 44-45)

José Tengarrinha afirma que “José Acúrsio das Neves pode considerar-se um dos mais lúcidos espíritos da nossa primeira metade do século XIX e, sem dúvida, uma das maiores figuras do pensamento económico em Portugal.”


Publicações

Textos sobre Economia

Memória Económico-Política sobre a liberdade do Comércio dos grãos com a sua aplicação às Ilhas dos Açores, manuscrito de 1800, publicado em 1941.

Variedades sobre objectos relativos às artes, comércio e manufacturas consideradas segundo os princípios da economia política, Lisboa, 1814, 1817, 2 tomos.

Memória sobre os meios de melhorar a Indústria Portuguesa, considerada nos seus diferentes ramos, 1820.

Memória sobre alguns acontecimentos mais notáveis da administração da Real Fábrica das Sedas desde o ano de 1810, e sobre o seu restabelecimento. Dirigida à Corte do Rio de Janeiro em 1819, Lisboa, 1821.

Noções Históricas, Económicas e Administrativas sobre a produção e manufactura das Sedas em Portugal, e particularmente sobre a Real Fábrica do Subúrbio do Rato, e suas Anexas, 1827.

Considerações Políticas e Comerciais sobre os Descobrimentos e Possessões na África e na Ásia, 1830.


Textos Históricos e Políticos

Ao ILL.mo E Ex.mo Senhor Luís de Vasconcelos e Sousa, do Conselho de Sua Majestade e Presidente do Desembargo do Paço em sinal de gratidão O. D. C.. 1794.

Manifesto da Razão contra as usurpações francesas oferecido à Nação Portuguesa, aos Soberanos e aos Povos, 1808.

A Voz do Patriotismo na Restauração de Portugal e Espanha, 1808.

O Despertador dos Soberanos e dos Povos, 1808.

Post-Scriptum ao Despertador dos Soberanos e dos Povos, 1809.

Reflexões sobre a Invasão dos Franceses em Portugal, 1809.

A Salvação da Pátria. Proclamação sobre a sua honra e o seu dever nas actuais circunstâncias da Monarquia, 1809.

Observações sobre os recentes acontecimentos das Províncias de Entre-Douro-e-Minho e Trás-os-Montes, 1809.

A Generosidade de Jorge III e a ambição de Bonaparte. Wellesley e os Generais Franceses, 1809.

Discurso sobre os principais sucessos da Campanha do Douro oferecido aos ilustres guerreiros que nela se distinguiram, 1809.

Paráfrase ao Capítulo XIV do Livro de Isaías, 1809.

História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal, e da Restauração deste Reino, 1810-1811, 5 vols.

Elogio Fúnebre do Marquês de La Romana, D. Pedro Caro de Sureda, recitado na Assembleia Ordinária da Academia Real das Ciências de Lisboa de 23 de Fevereiro de 1811, 1811.

Cartas de um Português aos seus concidadãos sobre diferentes objectos de utilidade geral e individual, 1822.

Manifesto em que o Desembargador José Acúrsio das Neves expõe e analisa os procedimentos contra ele praticados pelos ex-regentes do Reino, e os seus fundamentos, 1822.

Entretenimentos Cosmológicos, Geográficos e Históricos, 1826.

Todos estes textos estão incluídos em Obras Completas de José Acúrsio das Neves, estudos introdutórios de António Almodovar e Armando de Castro, Porto, Afrontamento, 6 volumes.

Fernando Reis


Bibliografia

ALMODOVAR, António, “O pensamento Político-Económico de José Acúrsio das Neves: Uma Proposta de Leitura”, in Obras Completas de José Acúrsio das Neves, Porto, Ed. Afrontamento, Vol. I, pp. 15-60.

ALMODOVAR, António, “Acúrsio das Neves e a Penetração da Economia em Portugal”, in Obras Completas de José Acúrsio das Neves, Porto, Ed. Afrontamento, Vol. III, pp. 81-110.

ALMODOVAR, António, “Acúrsio das Neves: Um Pensamento e o seu Contexto”, in Obras Completas de José Acúrsio das Neves, Porto, Ed. Afrontamento, Vol. VI, pp. 7-25.

AMZALAK, Moses Bensabat, A Economia Política em Portugal – O Economista José Acúrsio das Neves. I – Bio-bibliografia, Lisboa, 1920.

AMZALAK, Moses Bensabat, A Economia Política em Portugal – O Economista José Acúrsio das Neves. II – Doutrinas Económicas, Lisboa, 1921.

CASTRO, Armando, “José Acúrsio das Neves, um doutrinador da sua época historicamente atrasado”, in Obras Completas de José Acúrsio das Neves, Porto, Ed. Afrontamento, Vol. 1, pp. 61-136.

CASTRO, Armando, “O Sistema Económico Conceitual de José Acúrsio das Neves”, in Obras Completas de José Acúrsio das Neves, Porto, Ed. Afrontamento, Vol. III, pp. 5-79.

LARANJO, José Frederico, Economistas Portugueses, Subsídios para a história das doutrinas económicas em Portugal, Lisboa, Guimarães Eds., 1976 (reedição do texto original de 1881-1884).

LOUREIRO, Fernando Pinto, Vida e Ideias Económicas de José Acúrsio das Neves, primeiro grande defensor da indústria moderna em Portugal (1766-1834), Lisboa, 1957.

Obras Completas de José Acúrsio das Neves, Porto, Ed. Afrontamento, s. d., 6 volumes.

PEDREIRA, Jorge Miguel, “Neves, José Acúrsio das”, PEREIRA, José Costa (coord.), Dicionário Enciclopédico da História de Portugal, Lisboa, Alfa, 1990, Vol. II.

TENGARRINHA, José, “Neves, José Acúrsio das (1766-1834)”, in Serrão, Joel (dir.), Dicionário de História de Portugal, Porto, Figueireinhas, 1981, vol. IV.


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