António Sérgio
(1883-1969)
Foi dos pensadores mais marcantes do Portugal contemporâneo, com uma vasta obra que se estende da teoria do conhecimento, à filosofia política e à filosofia da educação, passando pela filosofia da história.
Autor assistemático e um dos mestres do polemismo português, permaneceu no entanto sempre fiel a uma via que rotulou de idealismo racionalista e crítico. Sobre as razões do polemismo, entendeu-o sobretudo como uma via de combate no panorama das ideias do seu tempo. Por mais de uma vez escreveu que tinha nascido com uma conformação intelectual contrária à que fizera moda no seu tempo, «e daí proveio que a polémica se tornou a própria maneira de ser da minha vida espiritual. A minha fidelidade à própria inteligência havia de levar-me a este antipático papel de sempre resistir, contrariar, combater, que tem sido o meu destino».
Assim, afrontou românticos e intuicionistas, positivistas conteanos e positivistas lógicos, integralistas e marxistas leninistas, com uma energia missionária própria dos cristãos das primeiras eras, intitulando-se apóstolo da vida cívica, como que animado por um «rasto do divino», identificado com o supremo ideal das almas puras, e vendo Deus essencialmente como uma ideia na consciência.
Sob o ponto de vista dos conteúdos doutrinários, Sérgio encontrou a filosofia a partir de sua formação de engenheiro, ou seja, a partir da geometria analítica e da física matemática. O ponto de partida e o rumo da sua reflexão sempre permaneceu fiel ao que se lhe afigurara ser o génio íntimo dessas disciplinas, a saber, a passagem do sensível para a relacionação matemática, e a tendência a definir o objecto científico pelo resultado da operação matemática.
Queria isto dizer que a história da ciência, sobretudo a da física sua contemporânea, acabava por ser uma confirmação da filosofia de Platão, Descartes, Malebranche e Kant, identificando-se com o acentuar da capacidade operativa do sujeito no âmbito gnosiológico, e, portanto, com a actividade criativa do intelecto, transformando a ciência na ascese dos tempos modernos.
Contra a tentação do realismo, em que o homem era um simples espectador de uma natureza entendida como sistema fechado e separado da mente, torna-se agora o universo no resultado da actividade do intelecto, assente nos processos de relacionação matemática, determinando tanto o recuo do anti-intelectualismo como do primado da intuição sensível. Era esse o significado epistemológico da descoberta de funções sem derivada para valor algum da variável e, portanto, de curvas que não têm tangente em nenhum dos seus pontos.
Diferentemente do que sucedia na física de Aristóteles, em que a ciência era entendida à luz de um modelo discursivo, no qual inteleccionar o real, o particular e o concreto era classificá-lo sob o ponto de vista de uma ideia abstracta, e não condensá-lo num tecido de relações criadoras, a essência do intelecto radicava agora nessa sua natureza constitutiva da experiência, pelo que o pensamento científico é assumido como pensamento-criação e não como pensamento-síntese, guiado por um «dever-ser-inteligível» que determina que se crie a solução apenas depois de haver formulado o problema.
Quer isto dizer que o objecto científico não existe exteriormente ao sujeito, como algo que este descobre fora de si, integrando-o posteriormente em ideias gerais, transformando a natureza num cadáver abstracto e pobre, quando na verdade a «físis» em vez de ser uma coisa é uma actividade, como mostravam os microfísicos do seu século. O essencial, tanto na ciência como na filosofia, tanto nas ciências naturais como nas «humanidades», que tragicamente entre nós se separaram, era a invenção activa, tecendo uma vasta cadeia de relações cada vez mais densas e objectivas, porque só o todo verdadeiramente existe, só ele exprime o máximo grau de realidade e de verdade. Aí residia a chave do seu humanismo crítico: «consiste o humanismo crítico dos meus escritos, antes de tudo, na afirmação de que o intelecto é, na ciência, essencialmente activo, tomando a iniciativa da pergunta e a iniciativa da resposta».
A noção de «facto» é aliás bastante esclarecedora a respeito dos seus propósitos. Se para Sérgio não há factos com anterioridade à ideia, «a percepção depende muito mais da função estruturante da mente que da natureza dos sentidos que para a percepção concorrem». A percepção supõe por isso uma construção mental e contém em si uma teoria física, «ao passo que a mais complicada das teorias físicas vem desembocar numa percepção mais elaborada, mais coerente que a percepção anterior».
A ciência assenta num princípio de relação, e o conceito surge, assim, como uma relação, pelo que inteleccionar o real significa condensá-lo num tecido de relações, combinar uma ideia com outra, combinar relações com relações, num processo de crescente objectivação. Assim, um objecto é sempre e em qualquer caso um objecto do pensamento, criado pela actividade do intelecto. Um objecto é um tecido de ideias, no quadro de uma lógica de relação, parte de um todo próximo que por sua vez é parte de um todo mais vasto, pelo que o processo da inteligência vai de ideia em ideia, e não de coisa em coisa.
Logo, em lugar de falarmos em sujeito e objecto, devemos falar em harmonia progressiva de ideias, num processo criador de potencialidades ilimitadas, alterando inclusive as noções usuais de espaço e tempo, pois que o espaço deixa de ser considerado como uma realidade que contém as coisas, mas a actividade ordenadora da inteligência, o mesmo sucedendo com o tempo, que é a coordenação de movimentos, cuja existência não é «de facto» mas de entendimento.
Esta ascética que liberta o espírito do influxo sensível, revestiu-se de forte conotações éticas e políticas no seu pensamento. Se a alma não é um objecto-cousa, temos de admitir que ela se modifica com as suas próprias ideias, sendo que a posse de uma ideia traduz uma modificação da alma, num processo que mais não é do que a afirmação da bondade intrínseca dos estados mentais.
Veríamos assim o homem, pela via dessa nova ascese, alçar a sua consciência individual ao degrau mais alto de uma vasta consciência intelectiva e unitiva, «órgão de uma humanidade espiritual e fraterna, já não dividida em antagonismos de classe», almejando a redenção da humanidade pela força clara e luminosa das ideias.
Portanto, não era apenas de filosofia da ciência que se tratava. Tratava-se fundamentalmente de uma filosofia com profundas implicações humanas e sociais, regendo o comportamento e a acção de cada um no todo social de que faz parte. Daí uma doutrina cooperativista a nível da economia. Daí uma doutrina democrática a nível da organização política da sociedade. Daí uma filosofia da educação e uma concepção da pedagogia que encara a criança e o jovem como seres activos e criadores. Daí finalmente uma teoria da cultura e uma teoria da história que o lançou em polémicas célebres sobre os rumos de Portugal, no contexto da reforma da mentalidade portuguesa e da educação lusitana, apostado em espiritualizar e em purificar, naquele sentido de objectivação e concretização autênticas, todos os domínios da nossa vida cívica, porque ser culto é ser capaz de «encontrar o bem na pura espiritualidade do ser pensante».
No entanto, a apologia do todo e do universal como máximo grau de realidade e de bondade, não o aproximou de formas de dominação política que desprezassem o indivíduo. Contra as várias experiências totalizadoras do seu tempo, proclamou que não existe qualquer legitimidade em diluir o indivíduo no estado, sobrepondo-se este aos direitos de cada um. Pelo contrário, é o respeito pelos obstáculos individuais que define o ser moral. É no indivíduo, em cada indivíduo, que a unidade da consciência se manifesta, invocando o exemplo supremo da sua formação cristã, de um Deus que para respeitar a liberdade da sua criatura permitiu a queda. Daí a apreciação que, nas Cartas de Problemática fez de Marx e Engels: aceitou de braços abertos o que neles viu de verdadeiro humanismo, de revolta contra a alienação do homem, transformado-o em mercadoria, ao serviço do dinheiro, mas não lhes aceitava o materialismo, tido como resultado de uma perspectiva filosófica que ofuscava a espontaneidade do pensamento, impedindo a sua livre afirmação. A procura dos meios para a realização da sociedade ideal deveria assim ter em conta dois princípios inalienáveis, sendo o primeiro a necessidade de considerar a natureza humana como fim em si própria e como valor absoluto, e o segundo a necessidade de conciliar os actos que se praticam para a libertação dos homens com a liberdade de cada ser humano: «caminhe-se para a liberdade através da liberdade»!
Neste contexto formulou a sua doutrina sobre o socialismo cooperativista. Sérgio, considerava secundário o valor atribuído pelos republicanos à reforma das instituições políticas, desde que tais reformas parassem na esfera política, sem abarcarem a esfera económica e social, surgindo-lhe o cooperativismo como a forma de organização social mais consentânea com a sua concepção do homem como ser activo e criador. À socialização sob a omnipotência do estado, preferiu a socialização pelas cooperativas, pondo a faina sob a acção do povo e não de políticos ou de partidos.
Em coerência com o seu sistema de pensamento, defendeu que a democracia, ao invés de ser uma coisa é uma actividade que se identifica com o processo da cultura, um dinamismo de essência espiritual, um fim que radica na autoridade crescente de cada um sobre si próprio, acabando por tornar o estado desnecessário, pois substituído pelo império de cada alma livre. Assim, a vontade geral que a democracia invoca é «a vontade de qualquer indivíduo, sempre que este, para proceder, toma uma atitude de pensar objectiva, racional, geral», subindo do indivíduo à pessoa, do plano biológico ao plano do espírito, fazendo o homem coincidir com o cidadão.
Obras
Para referências mais amplas veja-se A. Campos Matos «Bibliografia de António Sérgio», em Vértice vol. 30, nº 319-320, Agosto-Setembro, 1970, pp. 568 a 597; id., «Bibliografia de António Sérgio», em Revista de História das Ideias, nº 5, Coimbra, 1983.
O Problema da Cultura e o isolamento dos povos peninsulares, Porto, 1914; Ensaios I, Rio de Janeiro, 1920; Tréplica a Carlos Malheiro Dias sobre a questão do «Desejado», Lisboa, 1925; Ensaios II, Lisboa, 1929; Ensaios III, Porto 1932; Ensaios IV, Lisboa, 1934; Democracia, Lisboa, 1934; Ensaios V, Lisboa, 1936; Cartesianismo real, cartesianismo ideal, Lisboa, 1937; História de Portugal, tomo I - Introdução geográfica, Lisboa, 1941; Ensaios VI, Lisboa, 1946; Cartas de Problemática, Lisboa, 1953-55; Ensaios VII, Lisboa, 1954; Ensaios VIII, Lisboa, 1958; Tentativa de interpretação da história de Portugal, Lisboa, 1962.
Bibliografia
AA VV, Homenagem a António Sérgio, Lisboa, 1976; Vasco de Magalhães Vilhena, António Sérgio. O idealismo crítico e a crise da ideologia burguesa, 1964; Mário S. Cardia, «O pensamento filosófico do jovem Sérgio», em Cultura, História e Filosofia, nº 1, 1982; AA VV, Revista de História das Ideias, nº5, Coimbra, dois volumes, 1983 (integralmente dedicados a António Sérgio e com ampla bibliografia); J. Oliveira Branco, O humanismo crítico de António Sérgio. Análise dos seus vectores filosóficos, Coimbra, 1986.
Pedro Calafate
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