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Frei André do Prado
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Évora, pintura de 1501, Arquivo Distrital de Évora
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Évora, pintura de 1501, Arquivo Distrital de Évora
André do Prado nasceu em Évora nos finais do século XIV, tendo estudado no Convento de S. Francisco de Évora e nas Universidades de Paris e Bolonha. Foi mestre de Teologia na cúria romana, onde exerceu também o cargo de procurador do bispo de Braga. Já perto do fim da vida, com cerca de 70 anos, regressou a Portugal, onde foi provincial dos Franciscanos Observantes. A sua obra maior é o Horologium Fidei, sendo ainda conhecido um outro texto de sua autoria: o Spiraculim Francisci Mayronis, siue Liber Distinctionum, que permanece manuscrito nas bibliotecas de Assis e Oxford.
O Horologium Fidei é um pretenso diálogo com o Infante D. Henrique, mais artificial que real, permitindo-nos interpretar uma parte muito substancial do panorama da cultura portuguesa do ponto de vista teológico-filosófico nos finais da Idade Média. Pretendendo ser antes de mais um tratado de teologia em que se analisa o símbolo dos Apóstolos, tem também um interesse relevante para a filosofia, porque a discussão apoia-se com frequência em argumentos de ordem racional.
Questões fundamentais que percorrem a cultura teológica e filosófica medievais são aqui exploradas com minúcia, como sejam as da relação entre a fé e o entendimento, entre a ciência divina e a liberdade humana, entre Deus o homem e a natureza no quadro preciso dos temas da imagem e semelhança bem como do exemplarismo bonaventurano, a antropologia no quadro da relação entre o corpo e a alma, a metafísica da criação, a questão do mal como privação, a cosmologia aristotélica e ptolemaica secundada pelos quadros alegóricos e simbólicos do naturalismo medieval, a questão das heresias cujos conteúdos vários são alvo de acérrima crítica tendo em vista a afirmação da unidade da igreja, o diálogo entre a cultura cristã e a filosofia pagã, deitando os mais eminentes filósofos da antiguidade no leito precursor do cristianismo.
Para a discussão destes temas lança mão de um conjunto muito vasto de autoridades, como era comum nesta época, de que se destacam Escoto, Sto. Agostinho, o Pseudo-Dionísio, Boécio, St. Anselmo e S. Boaventura.
Seleccionamos apenas alguns temas atendendo aos limites de espaço, começando pelo das relações entre a fé e o entendimento, cujo esclarecimento é essencial para o espaço da filosofia, bem como o da relação entre Deus, o homem e o mundo, que prolongaremos pela análise da antropologia e da questão do mal.
A transcendência da fé em relação ao intelecto constitui a pedra angular da sua mundividência, pois as verdades da fé não constituem decisões da razão. No entanto, como dissera St. Agostinho, é um dom da graça «acreditar» em Deus e «compreendê-lo», sendo que só entende quem previamente crê. Assim, a inteligência sem a fé está impedida de ascender à compreensão das coisas mais elevadas, embora tal limitação se não aplique ao horizonte das ciências particulares, com as quais a fé, no entanto, se não incompatibiliza. O que no fundo está em causa é a confluência da «perspicácia de inteligência» com a «recta consciência» que faltara no mundo da filosofia clássica.
Por isso, abrindo-se aos horizontes da escolástica, dirá também que há muitas coisas que se compreendem antes de nelas se acreditar, e nunca nelas se crê se antes se não entenderem, coisas que não dão origem à fé sem antes se propor um argumento a seu respeito, projectando o seu pensamento numa pluralidade de perspectivações, que culmina num ideal de salvação.
Noutro plano, depois de dissertar longamente sobre a essência de Deus e sobre a sua unicidade, aborda a questão da relação entre Deus e as criaturas no quadro da metafísica exemplarista, conciliando causalidade e expressionismo. De nenhum modo pode algo ser feito racionalmente se na mente do criador não preceder algo da coisa a fazer, como uma espécie de exemplar, ou seja, como forma, modelo ou padrão, lembrando expressão quase idêntica de St. Anselmo, no Monologion.
Terminamos com uma referência à vexata quaestio da relação entre a ciência de Deus e a liberdade do homem, na qual se equaciona a questão do mal, abordada na linha do De libero arbítrio de Sto. Agostinho. Se Deus tudo sabe, como pode dizer-se livre a vontade humana? Será admissível que tendo Deus presciência de que eu hei-de pecar, possa eu, no entanto, não pecar? Se Deus tudo pode, como permite o mal? Se tudo participa de Deus, participará igualmente o mal da sua divina essência? Se sabia que o homem ia pecar, porque razão o criou?
A tudo responde o Franciscano: tudo o que é contingente e mutável na ordem da natureza e do tempo é imutável na mente de Deus, pois que conhece os seres contingentes de forma não contingente, as coisas mutáveis de forma imutável, as futuras presencialmente, as temporais eternamente; é possível em si que o homem não peque, mas não é coadmissível que eu não peque tendo Deus presciência de que eu pecarei, pois se seguiria o absurdo de que aquele que tem presciência de tudo possa enganar-se e iludir-se; os agentes do mal foram criados bons por natureza, donde não ser Deus o autor do mal, pelo que este não pode ser considerado princípio do mal pelo facto de ter criado o seu agente, dado que este, enquanto existe é bom. Nada pode vir de Deus mau porque tudo o que existe em Deus é a sua essência e por essência Deus é sumamente bom, nele não há nenhum mal, nenhuma falha, nenhuma diminuição. O mal não radica pois num princípio, é um desvio, um alvo errado, uma falha de razão, uma debilitação da vontade, e aquilo que está totalmente privado de bem não é nada. O mal pertence-nos enquanto mal positivo, mas a título de uma debilitação dos bens que nos são próprios da qual somos responsáveis, por termos obliterado voluntariamente a nossa natural orientação para o bem.
As páginas do Horologium são ainda ricas pelas explanações a que o autor se entrega no âmbito da cosmologia, prolongando-se na expressão de um naturalismo muito preso à alegoria e ao simbolismo, abrindo a finitude da natureza a um significado que infinitamente a transcende.
Já na circunstanciada análise que faz das heresias, a sua preocupação maior é a de afirmar a unidade da igreja, misticamente referida à túnica inconsútil de Cristo, afirmando o ideal comunitário que a todos os fiéis deve unir em relação ao corpo de Cristo.
Obras
Horologium fidei: diálogo com o Infante D. Henrique, (edição portuguesa de Aires Augusto do Nascimento, Lisboa, 1997; Spiraculum Francisci Mayronis (manuscrito)
Bibliografia
F. Félix Lopes «À volta de Frei André do Prado», Colectânea de Estudos, 2 (1951), Braga, pp. 121-132; Mário Martins, «O livro que o Infante mandou escrever», Brotéria, 71 (1960), pp. 195-206; id., «O diálogo entre o Infante D. Henrique e Frei André do Prado», Revista Portuguesa de Filosofia, 16 (1960), pp. 281-295; António Domingues Sousa Costa, «Mestre Frei André do Prado, desconhecido escotista português do século XV», Revista Portuguesa de Filosofia, 23 (1967), pp. 293-337.
Pedro Calafate
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