Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Luis de Molina

Luis de Molina nasceu em Cuenca e morreu em Madrid. Todavia, a sua acção de intelectual e professor esteve durante muitos anos ligada a Portugal, pois fez o noviciado em Coimbra, cidade na qual estudou Filosofia e Teologia, tendo também leccionado Filosofia no Colégio das Artes de Coimbra e Teologia na Universidade de Évora.
Molina não foi um mero repetidor ou compilador das opiniões da escola, pois sobressai no panorama cultural ibérico também pela novidade e arrojo das suas teorias, razão por que muitas delas se revestiram de intensa polémica, chegando a sua primeira obra, uma síntese do seu curso em Évora de 1570-73, no qual comentava a primeira parte da Suma Teológica de S. Tomás, a merecer a proibição de Roma.

No entanto as suas duas obras mais notáveis são o De Concordia e o De Iustitua et Iure.

A primeira motivou acesa polémica entre jesuítas e dominicanos, e ficou célebre na história da filosofia pela exposição que faz do tema da ciência média, que é suposto ter sido primeiramente exposto por Pedro da Fonseca nas suas lições em Coimbra. Em todo caso, tendo sido Molina o seu principal expositor público, ficou esta questão associada ao seu nome, com a designação de molinismo.

No entanto a chamada ciência média não é o núcleo da sua obra, mas um corolário de um conjunto de princípios fundamentais que importa sublinhar.

Em primeiro lugar, a grande preocupação de Luis de Molina foi a separação entre os planos natural e sobrenatural dos actos humanos, distinção mediante a qual a vertente natural ou racional do homem é amplamente dignificada.

Como desenvolvimento deste princípio temos a defesa da capacidade natural do intelecto para aceder aos actos de fé sem intervenção da revelação, no sentido preciso em que o homem, sendo naturalmente bom, pode, servindo-se apenas da razão natural, dar assentimento às verdades da fé sem necessidade da «iluminação interior» tão sublinhada por Santo Agostinho. Neste sentido, Molina fala de uma fé natural, a qual, no entanto, não tinha qualquer efeito no processo de justificação.

Esta doutrina era contrária à até então defendida pelos teólogos, pois a tese mais afirmada era a da origem sobrenatural tanto das verdades da fé como dos actos de fé, sendo que ao estabelecer aquela possibilidade Molina contribui decisivamente para a valorização da natureza humana.

O terceiro aspecto refere-se à possibilidade de todos os homens, mesmo os não cristãos, poderem sentir naturalmente a dor moral ou arrependimento, embora, tal como na fé natural, essa dor moral não contribua para o perdão, e portanto, para a justificação.

Daqui advém igualmente a valorização da natureza humana, prolongando-se este ponto na defesa que faz da possibilidade do heroísmo das decisões extremas sem o auxílio particular de Deus.

Este aspecto era muito sublinhado pelos teólogos medievais, nomeadamente no que se refere ao elogio da opção de Sócrates, a qual só teria sido possível devido ao auxílio extraordinário de Deus. Essa não é a posição de Molina que em coerência com o seu ponto de partida inicial, entende que o homem possui, por natureza, forças suficientes para, por si só e sem o auxílio particular da graça, optar pelo bem em situações extremas.

Chegamos então ao corolário destes princípios que Molina desenvolve no De Concordia: a ciência média. O essencial da questão era saber como se conciliava a liberdade humana com a graça divina, questão que desde as polémicas de Santo Agostinho com Pelágio, passando pela doutrina tomista, sempre levantou sérias dificuldades.

Sto. Agostinho distinguira entre livre arbítrio e liberdade, atribuindo ao livre arbítrio a capacidade de eleger um determinado propósito, seja bom ou mau, mas a liberdade é algo diferente, pois radica no bom uso do livre arbítrio. Ora, dada a corrupção da nossa natureza produzida pelo pecado, o bom uso do livre abítrio ou liberdade, não pode dar-se sem a intervenção divina.

A posição tomista, ou pelo menos a que parece mais concordante com os difíceis textos que S. Tomás escreveu sobre o tema, era defendida, na época de Molina, pelos dominicanos, consistindo essencialmente na tese da praemotio (prémoção) physica. A questão a determinar era a de saber como era possível que Deus movesse a vontade do homem sem que esta fosse coagida cabendo a Deus a responsabilidade. S. Tomás entendia a este respeito que a vontade só ficaria coagida se fosse movida contra a sua inclinação própria, o que não sucede dado que Deus como motor da vontade é o mesmo que lhe deu a sua inclinação para o bem. Em todo o caso, a vontade só poderá ser movida «eficazmente» por Deus. Quanto ao modo como Deus intervém, a doutrina da praemotio physica defendia que a intervenção de Deus era anterior à acção, sendo essa intervenção que proporcionava ao sujeito a capacidade para actuar.

A solução de Molina é a resposta a uma insatisfação sentida perante esta concepção, substituindo a doutrina da prémoção pela do concurso: o homem, no pleno uso do seu livre arbítrio, planeia, escolhe e decide, mas carece do concurso divino para poder levar a cabo o seu intento, sem que, no entanto, esse auxílio o determine. Mais importante ainda, esse concurso da causa primeira com a causa segunda é despertado ou provocado por esta, ou seja, pela decisão livre do homem para realizar um determinado propósito, sendo que o concurso de Deus não é anterior à actuação da vontade, mas simultâneo.

O concursus simultaneus, em oposição à tese da praemotio estabelecia uma condição importante de salvaguarda da liberdade humana, ausente na posição dos dominicanos, pois, salvaguardadas as devidas distâncias entre o infinito e o finito, estabelecia um relativo paralelismo entre potências: a humana, que decide agir, mas que carece de poder para agir, e a divina, que provocada ou movida por essa decisão humana, decide dar o seu auxílio, que actua simultaneamente com a causa segunda na sua acção e efeito. Diz Molina: «Pode concluir-se legitimamente assim: dá-se o influxo desta causa segunda; logo, dá-se também o concurso geral da causa primeira. Mas não se pode concluir em sentido contrário: Dá-se o concurso geral de Deus; logo, também o concurso desta causa segunda (Conc. disp. 30,5).

Com estas palavras Molina reconhece que não há acção do homem sem a acção de Deus, como era tradição entre os teólogos, mas abre caminho para a tese de que a acção de Deus não obriga necessariamente a acção do homem que permanece livre.

Posta a questão nestes termos, a «ciência média» refere-se ao conhecimento que Deus possui desde toda a eternidade daquilo que os homens fariam em todas as circunstâncias possíveis, na hipótese de receberem este ou aquele auxílio da graça, ou seja, é a ciência pela qual Deus «vê o que faria o homem, no uso da sua liberdade, quando colocado nesta ou naquela ordem, ou em infinitas ordens de coisas, podendo, se quisesse, fazer na realidade o oposto» (Conc. disp. 52,9).

Nesta conformidade, é em virtude desta previsão que Deus, entre o conjunto de possíveis, escolhe ou cria as situações nas quais o homem age num sentido que está de acordo com o plano ou processo da salvação.

O fulcro da questão está em que Deus não comanda por decreto mas por previsão, não sendo a diferença inócua, porque é o mesmo que dizer que a eficácia da ordem sobrenatural depende da ordem natural. É em virtude dessa previsão que Deus estatuiu os seres, modos e auxílios que conduzem à salvação, no sentido em que poderíamos dizer que Deus conhece o futuro de cada um de nós, não porque o houvesse decretado, mas porque previu o uso que cada qual faria da sua liberdade, prevendo por isso a cooperação que cada um lhe viria a dar aos auxílios particulares que lhes confere.

De algum modo, é esta mesma questão da liberdade e da dignidade do homem, neste caso de todos os homens, que Molina estuda no De Iustitia et Iure, obra fundadora do moderno direito internacional, no tocante às relações entre os povos e as nações, pois é escrita no contexto preciso das novas problemáticas colocadas pela expansão marítima e pelo descobrimento dos povos do Novo Mundo.

O que há de mais revolucionário nos escritos de Molina é a negação muito clara do princípio segundo o qual a superioridade civilizacional e cultural constituia por si só justo título de expansão e conquista colonial. Nenhum povo, por mais bárbaro ou incivilizado que seja pode ser escravizado apenas por esse facto, nem portanto expoliado dos seus bens, ou desrespeitado nas suas instituições e justos títulos de poder.

A sustentar esta tese estavam doutrinas anteriores de S. Tomás de Aquino, mas que agora são aperfeiçoadas e alargadas: o homem é um ser naturalmente sociável, logo a comunidade civil tem um fundamento no direito natural; todas as entidades dotadas de fim próprio deverão possuir as faculdades necessárias para o alcançar, logo, sendo a comunidade uma entidade transpessoal dotada de fins próprios, deve possuir as faculdades necessárias para os atingir; o fim da comunidade é o bem comum e as faculdades para o atingir são as que se inscrevem no âmbito do poder ou domínio político; nesta conformidade o poder político tem um fundamento no direito natural, sendo independente da fé e dos costumes, não constituindo a infidelidade justo título para fazer a guerra ou para a escravatura; assim também, o poder radica mediatamente em Deus, autor da natureza, e imediatamente na comunidade, que o transfere ao soberano, aí se fundando a sua teoria sobre a soberania inicial do povo, com consequências directas no âmbito do direito de resistência.

Estas teses contrariavam as que eram defendidas por muitos autores cristãos, nomeadamente pelo cardeal Henrique de Susa (o cardeal ostiense) e por John Mayr, defendendo o primeiro que o poder depois da vinda de Cristo passou a basear-se no estado de graça, pois que Cristo havia transferido todo o poder para os cristãos através de si próprio.

Outro aspecto em que Molina sobressaiu no panorama jurídico e filosófico do seu tempo foi ao distanciar-se de Francisco Vitória, ao não admitir como justo título de guerra o direito de navegação e comércio em todas as partes do mundo, defendendo Molina o direito que a qualquer povo assiste para o impedir, se assim o desejar.

Obras
Commentaria in primam divi Thomae partem, 2 vols., Cuenca, 1592; Concordia liberi arbitrii cum gratiae?, Lisboa, 1588; De Iustitia et Iure, 3 vols, Cuenca, 1593; Obra Completa (trad. castelhana), Madrid, 1941-43.

Bibliografia
Orlando Romano, O molinismo, esboço histórico da génese de conceitos filosóficos, Luanda, 1969, (contém ampla bibliografia); Lúcio Craveiro da Silva, «Concepção e direitos dos povos descobertos segundo a doutrina peninsular», em Ensaios de Filosofia e Cultura Portuguesa; Braga 1994, pp. 99-108.

Oswald Market, «Implicaciones filosóficas de la polémica sobre la gracia y la libertad en Molina» in Luis de Molina Regressa a Évora, Évora, 1998.

Manuel Ferreira Patrício, «A doutrina da ciência média, de Pedro da Fonseca a Luis de Molina», in ibid.

Pedro Calafate


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