Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Antero de Quental (1842-1891)

Do ponto de vista filosófico é o maior vulto da Geração de 70, com uma obra que se estende da poesia à prosa, passando por um rico epistolário de grande importância para a delimitação das várias fases do seu pensamento.

Nos primeiros anos da sua actividade, Antero foi um pensador instável, conhecendo sucessivas fases de evolução do seu ideário, ora de entusiástico idealismo, ora de negação e descrença, vindo a culminar, no final da vida, numa fase de maturidade e serenidade crítica a que correspondem os seus mais profundos textos em prosa, com destaque para A filosofia da natureza dos naturalistas (1886) e sobretudo para as Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX. (1890).

Nestes textos afirma o que considera ser «a minha filosofia» ou «o meu sistema» elaborado no quadro do grande debate do século XIX entre cientismo e metafísica. Daí o seu idealismo naturalista, preocupado, por um lado, com a delimitação da esfera de actuação do conhecimento científico fora do apriorismo abstracto do espírito de sistema hegeliano e com aproximação ao neokantismo, e, por outro lado, com o restabelecimento dos direitos da metafísica, por reconhecer que o conhecimento científico não é o conhecimento último e perfeito, nem o ponto de vista científico esgota a compreensão da realidade, por isso que nenhuma abstração ou generalização dos dados da ciência pode bastar-se sem ser fecundada pelo ponto de vista das ideias metafísicas, que no texto sobre a Filosofia da natureza dos naturalistas considera serem as de causa, substância e finalidade «às quais têm de ser referidas em última instância as conclusões da ciência».

As ideias metafísicas são ora postulados para as diferentes ciências, ora princípios fundadores duma explicação geral do universo. Por isso, a filosofia não pode ser, como para o positivismo, o quadro empiricamente ordenado dos factos do universo, mas sim a sua compreensão e explicação racional: «metafísica e ciência são duas séries convergentes que partem de pontos opostos e com leis de desenvolvimento diversas; mas, como convergentes, encontram-se: o ponto onde se encontram e, sem se fundirem, reciprocamente se penetram, é que é a filosofia. A filosofia tem pois por matéria a ciência, por forma a metafísica», sendo essa convergência que o faz sustentar a ausência de antinomias aparentes que só se afirmam pelo divórcio empobrecedor entre ambas.

Por isso entendeu que «quem diz filosofia diz idealismo», porque «só o sistema das ideias contém inteira a explicação das coisas», mas um idealismo que, para estar à altura do grande século das ciências naturais, não precisa de rejeitar o determinismo universal e a evolução como forma mecânica desse determinismo, necessitando isso sim, de não ficar por aí, pois tal determinismo e tal evolução são para a filosofia «o seu ponto de partida e a forma universal da fenomenalidade que a generalização científica lhe fornece e que ela, a filosofia, terá de analisar e interpretar à luz das ideias». Assim, «se a conclusão final das ciências tem de ser, como creio, o mecanismo universal, a conclusão final do pensamento metafísico tem por seu lado de ser o universal idealismo», simplesmente, era essencial compreender que entre esses dois termos não havia contradição, representando um e outro a tese e a antítese redutível a uma síntese que designou por materialismo idealista, ou por um idealismo dentro do naturalismo.

O drama no qual se situou foi o de rejeitar um naturalismo dogmático, à maneira de Hegel, que fazendo ciência "a priori", cristalizava numa dialéctica «gelada e inerte», ou num «epicurismo egoisticamente contemplativo», contra o qual protestava também a psicologia, «em nome da liberdade moral e da consciência»; e, por outro lado, um naturalismo empírico, identificado com o struggle for life, sentindo a sua alma a necessidade de devolver o primado à razão prática, culminando numa visão moral do mundo.

Foi para superar essas insuficiências que elaborou o seu pampsiquismo ou pandinamismo, por si entendido como a expressão mais elaborada do espiritualismo, fortemente inspirado na monadologia de Leibniz, e na ideia leibniziana de força, realizando assim a unidade entre o espírito e a natureza, entre o mecanicismo e a liberdade, a ciência e a metafísica.

A esta luz, a história é o teatro da liberdade e a evolução tem a sua essência na intervenção gradual do espírito na humanidade, a qual se dá mediante a afirmação da consciência que por sua vez se traduz num crescendo de moralidade e de liberdade. Trata-se assim de uma evolução que não se esgota nos limites do evolucionismo transformista, mas que partindo dos mais ínfimos degraus da natureza se afirma por uma capacidade de diferenciação progressiva entre o simples e o complexo, entre o inferior e o superior, implicando a finalidade ou seja, a ideia de um tipo a realizar, a mesma finalidade que Antero considerava como a pedra-de-toque de toda a elaboração filosófica nos domínios da natureza: «O espírito é pois uma força espontânea; mas é, por cima disso, uma força consciente. É esse predicado que vem completar a sua plenitude e fazer dele a força tipo», por isso, «na espontaneidade inconsciente da matéria está a raíz do que na consciência e na razão se chama verdadeiramente a liberdade».

É na ideia leibniziana de força (vis) que radica a sua tese sobre a unidade entre a matéria e o espírito, vendo a evolução como o alargamento da esfera de acção dessa força, surgindo-lhe o universo como «um ser de ilimitada e infinita expansão, tirando de si mesmo, da sua inesgotável virtualidade, de momento para momento, criações cada vez mais completas, mais ricas de energia, vida e expressão, envolvendo-se e desdobrando-se em voltas cada vez mais largas e sinuosas, na espiral sem termo do seu desenvolvimento».

Esse desenvolvimento supõe o triunfo final da liberdade e do bem pela afirmação plena da consciência que se eleva sobre os elementos naturais inconscientes, terminologia que deixa transparecer a leitura da Filosofia do Inconsciente de Eduardo Hartmann, e na qual resolve o seu pandinamismo: «O universo aspira pois à liberdade, mas só no espírito humano a realiza (...). Dormente e profundamente soterrada no mundo inorgânico, meio acordada já, mas só instintiva no mundo orgânico, é nos seres conscientes, é na sociedade humana que a razão encontra o seu órgão. O progresso da humanidade é pois essencialmente um facto de ordem moral: a obra tão maravilhosamente começada pelo inconsciente só pela consciência podia ser levada a cabo», substituindo progressivamente os elementos inconscientes por energias espirituais cada vez mais ricas e mais puras, que mais não são do que a afirmação das bases da liberdade e da moral.

De facto, à luz desse pandinamismo ou pampsiquismo, como expressão mais elaborada do espiritualismo, Antero entende que no mundo inorgânico, nos mais ínfimos graus da matéria a fatalidade é só a «máscara da razão», pelo que «o espírito humano sente agora palpitar nas coisas o que quer que é análogo à sua própria essência», superando afinal a linha de demarcação com a qual se não conformara nunca, por uma coordenação superior e coesão sistemática sem a qual não haveria verdadeira filosofia.

Como dissemos, este processo culmina numa visão moral do mundo, pelo recuo do egoísmo e do individualismo. A história era o teatro da liberdade, pretendendo com essa metáfora reforçar a dimensão dramática deste processo de luta contra a cegueira do egoísmo, deste combate vencedor contra a fatalidade e contra a morte, escrevendo já no final das Tendências que «o drama do ser termina na libertação final pelo bem». Sublinhamos que para Antero se trata também de uma vitória contra a morte, porque o verdadeiro sentido da conquista da vida eterna está na renúncia à limitação do eu individual, na renúncia do egoísmo e, nesse sentido, na vitória sobre si próprio e consigo próprio, como se a partir dessa vitória o eu se «dissolvesse em qualquer coisa de absoluto».

Bem entendido, esta dimensão dramática da liberdade comporta uma ascética e uma purificação da pessoa humana, na qual vemos certamente fortes componentes de religiosidade, os quais, com vicissitudes várias não abandonaram nunca o seu espírito. Não se trata das expressões tradicionais do catolicismo, que a seu tempo abandonou, mas de conceber um Deus imanente ao homem: «dentro do homem está o reino de Deus», que desse modo se agiganta, desse modo encara a sua possibilidade de realização no decurso da história, e desse modo, finalmente, congrega forças para o combate vencedor da moralidade e da liberdade. Por isso, «a consciência do justo é o único templo do único Deus», culminando o processo da luta do homem no seio do universo num horizonte de santidade, pois que a liberdade é aperfeiçoamento e, nesse sentido, é virtude e beatificação, como que a exprimir que afinal o sentimento religioso nunca deixou de ser essencial ao homem, um sentimento que nesta fase das Tendências (1890) o aproximou do budismo, nessa mesma linha de interpretação do sentimento religioso imanente à consciência individual, como também numa aproximação da sua «libertação final pelo bem» com o nirvana.

Foi também esta sua visão moral do mundo que determinou a sua filosofia política, marcada pelo socialismo de Proudhon, mas também por esse dinamismo intrínseco que soube estender ao processo de emancipação dos trabalhadores. A emancipação dos trabalhadores deveria ser obra dos próprios trabalhadores, ou seja, da sua energia moral e da sua dignidade, do seu esforço individual e colectivo. Em todo o caso, o essencial a notar é que a superioridade do socialismo sobre as outras formas de organização das sociedades emanava da sua superioridade moral: «Cousa alguma grande e duradoura se fundou ainda no mundo senão pela moral: e, se o socialismo tem de ser uma esplêndida realidade, só o será como um passo mais no caminho da evolução moral das sociedades (...), moralidade, moralidade e sempre moralidade».

Em fases de maior agitação e de menor serenidade intelectual, posteriormente superadas, elaborou teses que do ponto de vista político são eivadas de marcado extremismo, nomeadamente a concepção exacerbada do iberismo e do federalismo, que tinha por exigência do ideal de democracia socialista e descentralizada, chegando ao extremo de defender a extinção da nacionalidade, no seu célebre texto sobre Portugal Perante a Revolução de Espanha.

Noutra vertente, Antero marcou de forma muito sensível a consciência decadentista que desde a Geração de 70 determinou a existência de uma clivagem no diálogo cultural entre os Portugueses, sobretudo através da sua conferência do Casino Lisbonense, intitulada Causas da Decadência dos Povos Peninsulares (1871), onde mitificou o ideal de uma Europa, pátria da civilização e do progresso, da qual tragicamente nos sentia arredados, tese de que mais tarde se viria a afastar. Em todo o caso, nessa célebre conferência, identificava os erros de via da história pátria, incapaz de pelo culto das ciências, da liberdade moral e da elevação da classe média matar o beato, o fanático e o jesuíta que teimosamente cada português ocultava.

O drama da sua história terminou em suicídio, tendo escrito a propósito o seu amigo de sempre, Oliveira Martins, ele já também em fase desespero, que Antero não tivera filosofia bastante para saber que da vida nem sequer valia a pena nos desfazermos.

OBRAS
a) Poesia
Poesia Completa, 2 volumes, Círculo dos Leitores, Lisboa, 1991.
b) Prosa
Prosas, 3 volumes, Coimbra, 1923, 1926, 1931; Prosas Sócio-Políticas, org. e introdução de Joel Serrão, Lisboa, 1982; Prosas da Época de Coimbra, edição crítica org. por António Salgado Júnior, Lisboa 1982; Filosofia, organização introd. e notas de Joel Serrão, Lisboa, 1990.
c) Cartas
Cartas I e II, org. introd. e notas de Ana Maria Almeida Martins, Lisboa, 1989.

BIBLIOGRAFIA
Leonardo Coimbra, O pensamento filosófico de Antero, em Obras Completas de Leonardo Coimbra, Porto, vol. II, 1982; Fidelino de Figueiredo, Antero de Quental. A sua psicologia, a sua filosofia, a sua arte, Lisboa, 1909; António Sérgio, «Os dois Anteros», em Ensaios, IV, Lisboa, 1980; VVAA., Actas do Congresso Anteriano Internacional, Ponta Delgada, 1993; Joaquim de Carvalho, «A evolução espiritual de Antero», em Obra Completa de Joaquim de Carvalho, Gulbenkian, Lisboa, vol. IV; id., «Antero de Quental e a Filosofia de Eduardo Hartmann» em ibid., vol. I; id., «Sobre a origem da concepção da inconsciência de Deus em Antero de Quental» em idib., vol. II; Id., «Morte e imanência no pensamento de Antero de Quental», em ibid., vol. IV; Fernando Catroga, «A ideia de evolução em Antero de Quental» em Biblos, 56 (1980), pp. 357-388; Hernâni Cidade, Antero de Quental, Lisboa, s/d.; Manuel Cândido Pimentel, Antero de Quental, uma filosofia do paradoxo, Ponta Delgada, 1993; Gustavo de Fraga, «A síntese impossível» em Pensar a Cultura Portuguesa - Homenagem a Francisco da Gama Caeiro, Lisboa, 1993, pp. 151-165; Óscar Lopes, Antero de Quental. Vida e legado de uma utopia, Lisboa, 1983; Eduardo Lourenço, Poesia e Metafísica. Camões, Antero e Pessoa, Lisboa, 1983; id., «Antero e a filosofia ou a filosofia de Antero» em Colóquio Letras, 123/124, Janeiro-Junho, 1992, pp. 157-167; Leonel Ribeiro dos Santos, Introdução a Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, Lisboa, 1995; Lúcio Craveiro da Silva, Antero de Quental, evolução do seu pensamento filosófico, Braga, 1959.

Pedro Calafate


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