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Participação portuguesa na construção da Nova Química no Século XVIII Maria de Fátima Paixão
Se a contribuição de Lavoisier para o estabelecimento de uma Nova Teoria da Química no século XVIII é, sem dúvida, inultrapassável, a participação portuguesa nessa tarefa herculeana foi notoriamente relevante e não pode ser subestimada.
Terá sido o português João Jacinto de Magalhães (1722-1790), estabelecido em Inglaterra e amigo de muitos cientistas famosos como Franklin e Watt, quem informou os seus amigos da Academia de Paris, das últimas novidades científicas e técnicas inglesas. Pode considerar-se que foi este o início da transformação da Química europeia.
Em 1771 João Jacinto de Magalhães envia informações sobre os gases, em especial sobre trabalhos de Mayer, de Black e de outros, alerta para o interesse de tais trabalhos e sugere que se debrucem sobre eles. Em Março de 1772 Magalhães informou Macquer dos trabalhos de Priestley, e enviando outras recentes publicações sobre os gases. A um de Abril, Macquer expôs os resultados dos ingleses ante a Academia de Ciências de Paris e, a 14 de Julho, Trudaine encarregou Lavoisier de repetir as experiências de Priestley. Tal facto terá sido o início do interesse de Lavoisier pelo estudo dos gases e o arranque imparável que conduziria à substituição da teoria do flogisto por uma nova teoria no conhecimento químico.
O "ano crucial" de 1772, como se lhe tem chamado, marca o início dos trabalhos que conduziriam a uma grande alteração no modo de compreender o processo da combustão, tomando como princípio do seu quadro de pensamento a ideia de conservação da massa, que iria ter um longo caminho de teste experimental. Aliás, tal ideia já lhe viria da tentativa de interpretação dos resíduos sólidos que ficavam nos recipientes de destilação e evaporação das águas, nas análises que realizava. Numa carta fechada, dirigida à Academia das Ciências, em Novembro de 1772, e para ser guardada até que tivesse completado outras experiências, o químico francês já afirmava que o aumento de massa na combustão do fósforo e do enxofre provinha de uma imensa quantidade de ar.
Esta constatação foi, nas palavras do seu autor, o início da revolução química, apercebendo-se de que havia realizado uma importante descoberta ao mesmo tempo que avançava uma interpretação mais ampla para o fenómeno que descrevia, enquadrando nela todas as combustões.
Em 1774, a seguir à experiência da composição e decomposição do óxido de mercúrio, Lavoisier repete a experiência já antiga da calcinação do estanho e atribui à parte de ar desaparecido, durante a combustão, o aumento de massa do sólido observado na balança. A par de outros assuntos estudados, nos anos seguintes foi juntando argumentos que lhe permitiram, contra a opinião de todos os químicos do seu tempo, rejeitar a anterior teoria do flogisto, afirmando o papel do ar vital (oxigénio) nas combustões, ou seja, não de um princípio imaginário (que explicava o aumento de massa na calcinação dos metais mas que, progressivamente, começava a mostrar limitações) mas, sim, de um constituinte real do ar.
A experiência sobre a síntese e a análise da água, já antes realizada por Cavendish, mas no quadro da teoria do flogisto, veio agora, principalmente, completar os argumentos para um ataque público e frontal àquela teoria. A ideia de conservação da massa estava, assim, ao mesmo tempo, fortemente testada.
O facto de ter sido rico permitiu a Lavoisier introduzir, na Química, técnicas de experimentação e de medida muito sofisticadas. Em particular, impôs o uso sistemático de balanças aperfeiçoadas mas, igualmente, de outros instrumentos, bem documentados nos desenhos de sua mulher, Marie Anne Paultze. Aliás, é bem conhecido o recheio do Laboratório de Lavoisier pelo relatório do arresto, aquando da sua prisão. Grande parte dele encontra-se no Musée des Arts et Métiers em Paris.
Implicações
Três principais implicações resultaram da Teoria da Nova Química. Uma delas é traduzida pela Reforma da Nomenclatura, em 1787. Antes desta reforma reinava a confusão na designação das substâncias químicas. Uma nova linguagem, para comunicar um diferente paradigma, se impôs. Em 1787 Guyton de Morveau, Lavoisier, Berthollet e Fourcroy apresentavam à Academia o Méthode de Nomenclature, que se tornou o manifesto da Nova Química.
À imagem da profusão de nomes para as substâncias químicas, também nas vésperas da Revolução de 1789, existiam, em França, mais de 800 medidas diferentes, símbolos de desigualdade e de arbítrio. O princípio da igualdade saído da Revolução Francesa veio também estender-se aos pesos e medidas pela unificação do sistema de medidas, consequência imediata e natural das alterações científicas profundas já empreendidas.
Ainda outra implicação pode ser identificada com a Reforma da Comunicação em Química, e nas Ciências em geral. Novas Publicações surgiram no domínio científico, como os Annales de Chimie que ainda hoje se publica e que em Coimbra existe, desde o primeiro número.
Em 1789 é publicado o Traité Élèmentaire de Chimie, organizando as experiências e a teoria já relatadas nas anteriores Memórias públicas e marcando a separação definitiva entre a Química do flogisto de Stahl e a Química do oxigénio, exposta numa linguagem clara e nova. A primeira edição teve 2000 exemplares.
Existe, na Biblioteca do Departamento de Química da Universidade de Coimbra, um belo exemplar das obras de Lavoisier, integrando o Traité Élèmentaire de Chimie, da Imprimérie Imperial, em francês, e com data de 1864.
Rapidamente os cientistas franceses aderiram e apoiaram a Nova Teoria: Fourcroy, De Mourveau, Berthollet e outros. Macquer, que estivera no início dos processos manteve-se opositor da nova teoria. Fora da França, a oposição às novas ideias era forte, especialmente em Inglaterra, com Stevenson, Cavendish e Priestley, que morreram na crença do flogisto.
Fora das fronteiras da França Thomas Hope, de Edimburgo, foi o primeiro a adoptar a nova nomenclatura nas suas lições públicas. Também em Edimburgo, Black aceitou a nova explicação. Da Itália, Holanda e Suécia vieram apoios. A Rússia inaugurou o novo sistema com Lomonosov. A Academia de Berlim adoptou as ideias de Lavoisier em 1792.
Em Portugal, em particular com Vicente Coelho de Seabra (1764-1804) o Laboratório Chimico da Universidade de Coimbra, criado pela Reforma Pombalina de 1772, foi um dos baluartes de vanguarda da Nova Química. Aliás, Vicente Coelho de Seabra, publica um livro intitulado Elementos de Chimica em 1788 (um ano antes da publicação do próprio Traité) e uma segunda parte em 1790. O Departamento de Química reproduziu-o, em 1985, em edição fac-similada.
No seu primeiro volume dos Elementos de Chimica, considerado por ele como um livro de uso para cursos de Química, ele próprio explica, na introdução, que o livro é dedicado à moderna teoria da química, por ser mais coerente, razão pela qual não se demora em referir, nem sequer, a opinião de Stahl. Refere-se de modo explícito a Lavoisier: em fim Lavoisier demonstrando que uma porção de ar puro se combina com os corpos, quando Stahl supunha que eles tinhão perdido o seo phlogisto, e que havia separação do mesmo ar, onde este supunha combinação do phlogisto. Uma das experiências repetidas em Portugal foi a da síntese da água, supervisionada por Rodrigues Sobral e Vandelli.
Vicente Coelho de Seabra viu-se envolvido em acesa polémica científica pela sua adesão às ideias francesas, movida pelos flogistas portugueses, dos quais se destacava Manuel Henriques de Paiva, seu antecessor como Demonstrador de Química e posteriormente radicado em Lisboa. Contudo, Seabra adere incondicionalmente às novas ideias e amplia-as. Ele era um conhecedor profundo do desenvolvimento científico da Europa do seu tempo e é incontornável a sua importância na divulgação e na ampliação da Nova Química.
Em 1774, a seguir à experiência da composição e decomposição do óxido de mercúrio, Lavoisier repete a experiência já antiga da calcinação do estanho e atribui à parte de ar desaparecido, No tempo em que a Luís XVI informaram que a tomada da Bastilha pelo povo francês não se tratava de mais uma revolta mas de uma revolução, Lavoisier foi o rosto mais visível de uma Revolução na Química. Mas, a memória da História da Ciência deverá também perpetuar os muitos contributos e as adesões indispensáveis para a grande alteração e em que personagens portuguesas tiveram, indiscutivelmente, um papel primordial, no início e na sua propagação. Portugal estava, no final do século XVIII, ao mais alto nível científico e os nossos cientistas circulavam pela Europa e, com facilidade, aderiram às radicais ideias que constituiriam a Teoria da Nova Química.
Fig 1 Balança de ensaio, de João Jacinto de Magalhães, existente no Museu Pombalino de Física da Universidade de Coimbra
Fig 2 Lavoisier e sua esposa David, 1788, Metropolitan Museum of New York, USA (repare-se na posição que ocupa o balão onde se realizou a síntese da água)
Fig 3 Balança construída por Fortin, encomendada por Lavoisier (La Revue, Musée des Arts et Métiers, nº 6, Mars, 1994.)
Fig 4 Laboratório Chimico pombalino, século XVIII, Coimbra.
Fig 5 - Esquema do aparelho pneumático de Vicente Coelho de Seabra (in Seabra, V.C. (1985) Elementos de Chimica. Reprodução fac-similada da edição impressa em Coimbra, na real oficina da universidade em 1788 (parte I) e 1790 (parte II). Coimbra: Universidade de Coimbra.)
Fig 6 - Capa da obra Elementos de Chimica de Vicente Coelho de Seabra (in Seabra, V.C. (1985) Elementos de Chimica. Reprodução fac-similada da edição impressa em Coimbra, na real oficina da universidade em 1788 (parte I) e 1790 (parte II). Coimbra: Universidade de Coimbra.)
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