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O Horto do Esposo
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Horto do Esposo: rosto
do primeiro fólio do
Códice Alcobacense
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O livro intitulado Horto do Esposo deve-se à pena de um anónimo monge português de finais do século XIV ou de inícios do século XV. Possui um relevante interesse para o estudo da espiritualidade medieval portuguesa e, por essa via, para a filosofia, pois que esta não permanece estranha às vertentes fundamentais da religiosidade humana.
O seu autor revela-se, nesta obra, profundamente comprometido com a crítica à fugacidade dos bens terrenos, com o confronto entre o tempo e a eternidade, com a crítica à vaidade e à soberba dos sábios do mundo, num permanente elogio da simplicidade, da solidão e da contemplação, orientado por um acentuado pessimismo, onde se agiganta a meditação sobre a morte, numa linguagem marcada pela mística, veiculando o elogio da vida solitária de Petrarca, quando se refere aos filósofos gentios que souberam fugir para o ermo, numa aliança entre a sabedoria e o ascetismo, tão marcante no nosso movimento monacal.
Inscreve-se pois este livro na corrente ligada aos quadros da cultura monástica e da ruralidade, que na época vinha sendo posta em causa pelas escolas catedralícias, bem como pela figura central de Pedro Abelardo.
O conteúdo doutrinal desta obra é profundamente marcado pelo estoicismo de raiz senequista, aí avultando a figura de S. Bernardo. A marca da espiritualidade cisterciense surge com mais evidência no livro III, onde o monge português aborda a vaidade das coisas humanas e acentua a vanidade e a precaridade dos valores terrenos, insubsistentes como o vento, bem como no capítulo XXXIII do livro IV, onde discorre sobre o exemplo dos filósofos que na adversidade «se mantinhão estóicos».
Muitos dos valores da mundividência cristã medieval e também renascentista aparecem aqui enfatizados, seja o tema da vida como um sonho, que encontramos em Gil Vicente, Amador de Arrais e António Vieira, seja o tão sublinhado tema da morte. Não espanta por isso que neste livro se possa ler que «a vida he miragam e comparada à sombra» ou a uma imagem que aparece no espelho, discorrendo de seguida sobre as três categorias de vaidade a que estão sujeitas as coisas do mundo: variabilidade, cobiça, mortalidade, pelo que o mundo se tem de considerar como um «amigo falso», inimigo de todos os que fazem a sua vontade, destruindo cruelmente os que a ele se encostam.
Não falta aqui o tema candente da roda da fortuna, convidando o homem a fugir ao jogo da vida e confiando tão-só nos valores do espírito, onde lembra explicitamente o dito de Salomão: «Uaydade de uaydades, e todallas cousas som uaydades».
Esta oposição mundo/eternidade prolonga-se na exposição minuciosa dos doze enganos do mundo, com ressaibos de crítica social profunda: o sábio que não vive como ensina; o velho sem religião; o jovem sem reverência; o rico que não dá esmola; a mulher sem vergonha; o senhor sem virtude; o cristão contencioso; o pobre revoltado; o rei injusto; o bispo negligente; o povo indisciplinado; os que vivem sem lei.
Outro dos temas fortes da nossa espiritualidade medieval de influência bernardina é o do confronto das letras humanas com a sabedoria dos que apenas crêem, lembrando o dito de S. Bernardo, «a minha filosofia consiste em conhecer é Jesus, e Jesus crucificado», que muito se repercute também nesta obra. Por isso, para o nosso monge, os «filósofos de Deus» são todos os que se salvarem no dia do derradeiro juízo.
Em comparação com a filosofia de Aristóteles e de Platão, vinca o autor a superioridade da sabedoria dos apóstolos, que acima de tudo ensinaram a viver, sem os rebuscados argumentos dos lógicos, numa sabedoria mais alta que trilha os caminhos da contemplação e da santidade. No entanto, não se encontra neste livro um anti-filosofismo vincado, mas sobretudo a ideia muito sublinhada por Santo Agostinho ao considerar que toda a verdade é cristã e que por isso também nos livros dos filósofos antigos se deveria distinguir a peçonha da triaga, considerando esta última como cristã, por radicar até então nas mãos de injustos possuidores. Portanto, o que estava em causa não era tanto a condenação da filosofia, pois que radica em Jesus Cristo, como fonte da verdade, mas a condenação de um saber que se faz sem ele ou contra ele, recusando uma aliança com a virtude, nomeadamente com a humildade, a única que lhe dará sentido e finalidade, no quadro de uma concepção do homem que tem a sua razão de ser num Deus transcendente e criador: «sçiençia sem virtude nõ he digna de ser nomeada sabedoria».
Obras
Horto do Esposo, Códice Alcobacense CCLXXIII.
Bibliografia
Mário Martins, «À volta do "Horto do Esposo"», em Estudos de Literatura Medieval, Braga, 1956, cap. XXXII; id., «A filosofia do homem e da cultura no Horto do Esposo», em ibid., cap. XXXIII.
Pedro Calafate
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