Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

O Bosco Deleitoso

O Bosco Deleitoso Solitário é uma das obras mais marcantes da espiritualidade portuguesa medieval, profundamente marcada pelo pensamento de Petrarca e sobretudo de S. Bernardo

Escrita provavelmente no final do século XIV ou no início do século XV por um autor anónimo, mas certamente um monge, revela uma grande afinidade temática com o Horto do Esposo, tendo já sido aventada a hipótese de serem de obras de um mesmo autor. Bosco é aqui assumido no sentido de ermo, lugar de recolha, de retiro, de solidão, onde o homem, voltando-se para si mesmo, intenta conhecer-se, na linha do interiorismo agostiniano e do socratismo cristão. Conhece-te a ti próprio como condição para amar a Deus e ao próximo, tal é a primeira condição do rigorismo ascético a que esta obra nos conduz, em conselho significativamente expresso pela personagem que neste diálogo representa a sabedoria, na qual ecoa idêntico preceito expresso por S. Bernardo, para quem o «conhece-te a ti próprio» é também princípio de verdadeira sabedoria, por ser essa a via que conduz o homem a reconhecer a sua miséria, crescendo em humildade perante a grandiosidade divina.

Este livro é escrito como uma confissão autobiográfica de um pecador que é conduzido por um anjo aos caminhos da contemplação e da união com Deus, sendo nesse percurso aconselhado pela justiça, pela misericórdia, pela memória e pela sabedoria ao desprezo dos bens mundanais, que se desfazem «assi como fumo», a que se antepõe a afirmação do verdadeiro caminho do mais autêntico conhecimento, que consiste na ascese mística e na união com Deus.

Torna-se pois fundamental tomar consciência de que ao homem cumpre tomar vida solitária, apartada das cidades e dos negociadores do mundo, razão por que o pecador é conduzido a um «bosco nevoso», como antecâmara de um alto monte onde o aguardarão os prazeres da contemplação. É esta a oportunidade escolhida pelo monge para nos expor o tema das relações entre a vida activa e a vida contemplativa, a que se segue o enunciado dos graus da contemplação e das três espécies de visão.

A vida activa usa bem e com justiça as coisas do mundo, mas a vida contemplativa renuncia ao mundo, voltando-se somente para Deus. Sendo «vaga de todo o negócio», é capaz de sentir o sabor do paraíso dentro da alma. No entanto, a vida activa é boa, sendo justamente considerada como degrau pelo qual se ascende, com a graça divina, à vida contemplativa.

Mas, propriamente falando, os graus da contemplação, pelos quais atingirá o homem a união mística com Deus são a obediência fundada em perfeita humildade, o fazer da carne a servidora do espírito, o bem obrar com descrição, o conhecimento dos conteúdos da fé, o guardar a limpeza da alma, a que se seguem os três graus finais: «o sexto é trespassares-te de juizo de razom em na afeiçom da mente, ca nom has-de julgar aquelas cousas que vires, que te forem reveladas e dadas por Deus, segundo a razom humanal. O setimo graao é sguardar e oolhar a groria de Deus com face descuberta. O oitavo é seres tresformmado de craridade em craridade»

Começa aqui o interesse maior desta obra, sobretudo com os momentos em que descreve pormenorizadamente a experiência mística da visão e da união com Deus, saboreando fervorosamente o amor místico. Cabem aqui as suas inúmeras referências à «avondança de prazer» e à alegria da mente, à folgança espiritual «que me fazia todo ledo», estendendo-se essa alegria aos membros do corpo, «de tal guiza que me fazia andar assi: como bêvedo entrepeçando. E nom podia assessegar e abraçava as criaturas que achava com grandeza do amor do seu Criador», ficando a alma e a mente «esbarafida e de todo fora do seu estado e arrevatada sobre si mesma, trespassando e sobrepojando todolos razoamentos humanais».

Entrega-se pois o anónimo monge à descrição destes altos voos da alma, subindo muito para além da turvação das nuvens: «a minha alma ouvia então a voz do senhor Deus seu esposo e seu amado, quando se nembrava d'Ele e entom havia grande desejo de O ver e entom O viia, quando se maravilhava de sua majestade, e beijava-O polo grande amor que lhe havia, e abraçava-O pela grande deleitaçom que em Ele havia».

Mais adiante, este entusiasmo atinge o erotismo, quando acentua a intensidade dessa experiência: «E depois que o taamo mais de dentro da minha alma era perfeitamente apostado e ordenado e o amado era dentro metido, crecia a fiuza aa minha alma e tomava grande atrevimento e com grande atrevimento e com grande desejo que a costrangia, nom se podia mais conter: e lançava-se subitamente aos beijos do seu amado e com os beiços apegados enele aficava-lhe beijos de devaçoom mui de dentro do coraçom».

Neste calor místico e neste lume da divindade era como se a alma se derretesse, regressando ao seu estado de primitiva pureza, levantando-se em alheamento, porque posta fora de si pela excessus ou êxtase. Na linha da mística de S. Bernardo, que o autor aqui acompanha, se a contemplação só será plenamente possível na vida eterna, na vida terrena resta ao homem a sua antecipação através do êxtase, separando-se virtualmente a alma do corpo -- embora a ele continue susbtancialmente ligada -- para entrar em comunhão amorosa.

O Bosco Deleitoso é certamente um dos textos mais ricos e expressivos da espiritualidade portuguesa sobre a experiência do amor místico.

Obras
Booco Deleytoso Solitario, por Hermão de Campos, 1515 (microfilme da BNL F-7007)

Bibliografia
Mário Martins, «Petrarca no Bosco Deleitoso», em Estudos de Literatura Medieval, Braga, 1956, cap. XI; Aida Fernanda Dias «Boosco Deleytoso», em Antologia de Espirituais Portugueses, org. de Maria de Lurdes Belchior, José Adriano de Carvalho e Fernando Cristóvão, Lisboa, 1994, págs. 25-36.

Pedro Calafate


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