Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

A mundividência de António Vieira

Entre as figuras maiores do pensamento português do século XVII conta-se certamente António Vieira, com uma vasta obra que dele fez um moralista, um político e um filósofo da história, tudo coberto pelo manto omnipresente da arte retórica.

Como moralista, sublinhou as virtudes do estoicismo, sobretudo de Séneca a quem seguiu de perto, servindo-lhe o filósofo estóico como padrão de aferição do desconcerto do seu mundo, a que tantas vezes se referiu com as metáforas do jogo, da loucura e do sonho, temas muito enfatizados pela cultura barroca, tal como já sucedera com Gil Vicente, Camões ou Amador de Arrais, que tiveram no desconcerto do mundo um tópico essencial de expressão do seu descontentamento.

O que estava então em causa, para Vieira em particular, era a consciência do aumento do ritmo de encadeamento dos fenómenos no tempo, levando a uma desestruturação rápida e estonteante dos «lugares naturais», transformando a sociedade num teatro e a vida numa comédia, com a constante alteração dos papéis que a cada um é dado representar.

Daí o desfasamento entre o mundo dos filósofos e o mundo dos retóricos, o dos filósofos, por considerarem que uma contraditória não existe «no mundo dos possíveis», o dos retóricos, por saberem que ela existe no «mundo dos olhos». Assim, tal como fizera Gracián em Espanha, Vieira elabora um verdadeiro manual de sobrevivência no mundo das traições, das invejas, dos negócios, e dos interesses egoístas dos invídiduos e das nações, embora sem nunca esquecer a segurança e a serenidade dos princípios da moral cristã, da qual nunca se afastou.

O princípio que lhe serve de motivo neste âmbito é o que enunciou a propósito do fundador da Companhia de Jesus, ao considerar que o homem sábio fica livre da jurisdição da fortuna, mas não se livra das variedades do mundo, completando-o depois com a consciência da insuficiência do ideal apodictíco da lógica aristotélica, sendo agora necessária a ambivalência do «sim», que de acordo com as circunstâncias também podia significar «não» . Por isso também é possível resumir e sintetizar o seu pensamento político com uma só frase de que se serviu para caracterizar a figura de D. João IV como estadista e rei: «sabia reinar porque sabia dissimular, e reinou porque não dissimulou», daí passando ao texto em que lembra que David, para sobreviver quando prisioneiro dos Filisteus, tivera necessidade de se fazer passar por louco, embora o não fosse.

Estavam assim lançados os dados de uma obra profundamente crítica da sociedade e do mundo, com particular incidência na crítica das praxes coloniais no Brasil, onde se destacou na defesa dos direitos dos índios e dos escravos negros. Já na metrópole, bateu-se arduamente pelo fim das perseguições inquisitoriais com base no sangue, atingindo sobretudo os judeus, denunciando ao Papa as práticas cruéis do Santo Ofício.

No caso dos povos descobertos, sobretudo dos índios, aceitou a escravatura dos mesmos apenas e só na base das três célebres condições enunciadas por Francisco Vitória em Salamanca; no caso dos escravos negros, é certo que apoiou a política de importação de escravos africanos para o Brasil, como meio de impedir a extinção dos índios, mas também foi capaz de dizer que dominarem os brancos aos negros é força e não natureza, que a cor da pele deriva de um simples acidente geográfico, e que quem escravizar seria mais tarde escravizado, porque a mesa do jogo da vida era redonda, como a figura da terra, razão porque nela ninguém possuia lugares marcados. Assim, bateu-se pela aplicação prática dos grandes preceitos do direito natural moderno, assumindo-se como fundador de um mundo onde se apagariam as distinções de raças e credos em nome da comum paternidade divina, que viria a projectar na ideia de um quinto império, ou reino de Cristo consumado na terra, congregando todos os homens sob a autoridade de um imperador como chefe temporal e do sumo pontífice como cabeça da Igreja.

No caso dos judeus, denunciando ao Papa a crueldade das torturas da inquisição e a injustiça das condenações por presunção de delito e sem provas consistentes, bem como o medo espalhado no país pelo Tribunal do Santo Ofício, lançou também ao rei de Portugal um repto de indisfarçável humanismo e modernidade, ao lembrar ao soberano que o sangue é o que Deus dá a cada um sem eleição de quem o tomou, e que as condenações ou perseguições com base no sangue geram uma intolerância insuportável e indigna de um soberano católico. Do mesmo modo, fez ver ao rei de Portugal o quanto era não só cruel mas também politicamente incorrecta e contrária à «razão de estado» a intolerância, por afastar uma classe fundamental para a economia nacional, sobretudo numa fase de grandes dispêndios para assegurar a nossa independência e a recuperação do império.

Onde Vieira igualmente se assume como homem moderno é nos acesos debates para justificar a sua tese do Quinto Império. Considerou a propósito que o tempo era a chave das profecias, querendo com isso significar que em nenhum ramo do conhecimento humano o saber nos é dado de uma vez por todas. Pelo contrário, requeria-se a experiência que era filha do tempo bem como a crescente solidariedade entre os vários ramos do conhecimento, razão por que os modernos eram mais sabedores que os antigos, aceitando inclusive a célebre frase de S. Bernardo de Chartres para dizer que se considerava um anão aos ombros de um gigante, anão que nem por isso deixava de ver mais longe, atrevendo-se assim a interpretar as profecias de Daniel de modo diferente do dos antigos intérpretes. No fundo, aceitou a expressão de Giordano Bruno, ao considerar que os verdadeiros antigos eram os modernos.

Também a este processo do conhecimento aplicou as grandes metáforas da cultura barroca. De facto, a verdade em si própria era uma e una, não estando sujeita às oscilações do tempo, mas o mesmo não acontecia com os sucessivos graus de conhecimento que dela vamos possuindo em aprofundamento progressivo. A razão deste processo estava em que no fundo o mundo era uma comédia de Deus: a verdade descobre-se lentamente, num processo repleto de obscuridades, onde o final se não vislumbra logo desde o início. Nestes termos, Deus introduz no processo de conhecimento a dimensão lúdica própria do jogo, em que a cada passo o entendimento fica em estado de suspensão, e expectante do desenrolar do enredo, «encubrindo-se de indústria o fim da história, sem que se possa entender onde irá parar, senão quando já vai chegando e se descobre subitamente entre a expectação e o aplauso». Assim sucedera ao próprio Vieira ao interpretar as profecias de Daniel e ao formular as suas teses sobre o Quinto Império, que, no entanto, era um tema que corria a Europa barroca, não sendo, como por vezes se pensa, uma ideia original de uma mente agitada por original ímpeto messiânico.

Num cômputo global, o interesse de Vieira para a filosofia em Portugal desdobra-se por áreas que vão desde a ética, a filosofia política, a antropologia e a filosofia da história, sem esquecer as questões da estética da linguagem, a que deu base teórica no seu Sermão da Sexagésima.

Obras
Sermões, Porto, Lello, cinco volumes; Livro anteprimeiro da História do Futuro, Lisboa, 1982; Obras Escolhidas do Padre António Vieira, ed. organizada por António Sérgio e Hernâni Cidade, Lisboa, Sá da Costa, doze volumes, 1951-1954; Clavis Prophetarum -- De Regno Christi in terris consummato libri III, manuscrito 359 da biblioteca gregoriana de roma; defesa perante o tribunal do Santo Ofício, dois volumes, baía, 1957.

Bibliografia
Hernâni Cidade, Padre António Vieira - Estudo biográfico e crítico, Lisboa, 1940; id., Padre António Vieira -- A obra e o homem, Lisboa, 1979 (contém ampla bibliografia); António José Saraiva, O discurso engenhoso, S. Paulo, 1980; id., História e Utopia -- Estudos sobre Vieira, Lisboa, 1992; José van den Besselar, António Vieira, o homem, a obra, as ideias, Lisboa, 1981 (contém ampla bibliografia); Vasco Pulido Valente, A Sociedade, o Estado e a História na obra de António Vieira, in Estudos Sobre a Crise Nacional, Lisboa, 1980; Margarida Vieira Mendes, A Oratória Barroca de Vieira, Lisboa, 1989; Fernando Gil, «La preuve de la prophétie» in Annales, Janeiro-Fevereiro, 1981, nº1, paris, pp. 25-44; Pedro Calafate, «A Mundividência de António Vieira» in Metamorfoses da Palavra - Estudos sobre o pensamento português e brasileiro, Lisboa, 1988; id., «Ética, política e razão de estado na obra de António Vieira», in ibidem; id., «O desconcerto do mundo em António Vieira», in ibidem; id., «Expressões da temporalidade em António Vieira» in ibidem.

Pedro Calafate


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