Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Silvestre Pinheiro Ferreira

Filósofo português que marca a transição do século XVIII para o XIX, elaborou uma vasta obra nos planos da filosofia, da teodiceia e do direito, com justa projecção no Brasil onde viveu e foi professor, no início do século XIX (1810-1821).

Do ponto de vista estritamente filosófico, o enfoque mais relevante da sua obra orienta-se para uma filosofia da linguagem, exposta ao longo das Prelecções Filosóficas (1813) muito na linha do empirismo setecentista e dos seus marcos mais destacados, como foi o caso do sensismo de Locke e do projecto de uma filosofia analítica de Condillac, embora não esquecesse a importante contribuição das Categorias de Aristóteles para esse seu projecto, e não hesitasse em elogiar, contra Condillac, a teoria aristotélica do silogismo. Aliás, a presença de Aristóteles fora uma das heranças da sua passagem pela Congregação do Oratório, onde, nos anos quarenta do século XVIII o padre João Batista tentara uma restituição da filosofia aristotélica, abrindo-a aos horizontes da modernidade.

O que estava em causa para Pinheiro Ferreira era a elaboração de uma nova arquitectónica dos saberes que substituísse o espírito de sistema do racionalismo metafísico do século XVII, orientando-se assim para o projecto de uma filosofia analítica. Fora esse, para o filósofo português, o grande desígnio e ao mesmo tempo o grande mérito de Aristóteles qual o de reduzir toda e qualquer ciência à «nomenclatura própria de cada uma», tendo na base o ideal de uma simples explicação de palavras e frases em que as doutrinas se expressam, pois, como escreveu numa das suas prelecções «a abundância, a exactidão e a clareza das ideias» em qualquer área do pensamento humano «está em rigorosa proporção com a abundância, exactidão e clareza da linguagem ou nomenclatura própria da matéria de que se trata, e do uso que dela sabe fazer a pessoa que dela se serve», sendo que essa mesma proporcionalidade nos permite afirmar a existência de um paralelismo entre a linguagem e o pensamento, ao qual devemos também associar o plano dos objectos.

Sendo a filosofia para o nosso autor a direcção do espírito humano nas suas diferentes operações, já se vê a importância que devemos atribuir a esta insistente articulação entre a «teórica do raciocínio» e a «teórica da linguagem», encontrando nessa análise da linguagem ou nomenclatura uma nova base de organização e classificação dos saberes, como decorre dos critérios por si definidos para a constituição das ciências (uma nomenclatura que se desdobra em sistema, teoria e método). Quer isto dizer que para o autor a filosofia encontra a sua mais importante vertente no ensinar a «falar com acerto e a discorrer com elegância», sublinhando por isso, nas suas Prelecções, as três artes do trivium, Lógica, Gramática e Retórica, às quais deu o nome genérico de Ideologia, entendida como «teórica do discurso», completada com um Tratado das Paixões, versando a estética, a teórica da eloquência, da poesia e das belas artes, para terminar com o Sistema do Mundo, versando a Ontologia, Cosmologia e Teologia Natural.

Pinheiro Ferreira procurou dilinear um novo critério de sistematicidade, a que deu expressão ao considerar que o único processo de reduzir a ordem e sistema o labirinto de saberes acumulados, no decurso dos tempos, seria o de dispor em ordem e sistema «as expressões com que representamos os mesmos conhecimentos», supondo o princípio de que são os signos que permitem a articulação entre várias ideias.

Inscrevendo-se no naturalismo empírico do século XVIII, é, no entanto, de destacar a maior importância que atribuíu às ciências morais sobre as ciências físicas e matemáticas, servindo-se exactamente do critério da nomenclatura, pois considerou a nomenclatura nas ciências morais muito mais rica e de forte potencialidade semântica.

Silvestre Pinheiro Ferreira foi também autor de uma Psicologia, onde expõe os grandes princípios do sensismo que perfilhou, num horizonte marcado pelo conhecimento-sensação, e no qual a ausência dos sentidos pressupõe a impossibilidade da existência das ideias. Nesta mesma linha discorre sobre a união da alma com o corpo, na base de um discurso vincadamente mecanicista, vendo aí a união de forças concorrentes. A união da alma com o corpo significa antes de mais «o complexo das duas faculdades que o corpo e o espírito possuem de obrar um sobre o outro».

É este quadro sensista que dá a coloração específica à sua ontologia, «que tem por objecto as noções gerais que são comuns a todos os conhecimentos humanos», mas tendo sempre presente que esse conhecimento apenas apreende qualidades sensíveis, sejam as qualidades materias dos corpos (cor, sabor, extensão...), sejam as qualidades imateriais (inteligência, prazer, desprazer...).

Noutra vertente importa considerar a sua Teodiceia ou Tratado Elementar da Religião Natural e da Religião Revelada (1845), onde, na continuidade do empirismo e do utilitarismo setecentista, aborda as provas da existência de Deus, bem como a questão do conhecimento dos seus atributos.

Na base da sua argumentação encontra-se o princípio da causalidade, considerando uma exigência da razão a existência de uma causa primeira de natureza espiritual. Para o filósofo, era necessário conhecer a existência de uma «mudança que tenha sido a primeira, e que sendo tão necessária como as que acontecem depois, exige um acto espontâneo que seja a sua razão suficiente». Esta argumentação será posteriormente enriquecida, como fora comum no nosso século XVIII, pela aliança entre a teologia natural e a ciência. Na sua base encontrava-se a afirmação de S. Paulo segundo a qual as coisas invisíveis de Deus conhecem-se pelas coisas visíveis, surgindo-nos agora a admirável organização interna da grande máquina do mundo, que a ciência perscruta, como um livro aberto para o conhecimento dos divinos atributos.

Também no plano desta sua teodiceia abordou o candente problema do mal, que em Portugal já despertara a reacção de Teodoro de Almeida, também ele oratoriano, contra a afirmação de Voltaire de que «il y a de mal sur la terre».

Para o ex-aluno da Congregação do Oratório, não pode falar-se num mal substancial, nem num positivismo empírico do mal, pois, quando equacionado na ordem geral dos fins supremos, todo o que nos parece um mal se assume como um bem, na medida em que para esse fim concorre.

O autor abordou ainda um tema do maior interesse na apologética europeia e também portuguesa: a questão das relações entre a religião natural e a religião revelada, na qual se inscrevia também a das relações entre a razão e a fé, a respeito das quais se limita a dar expressão a princípios já consignados no Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra (1771) e nos Estatutos da Universidade de Coimbra (1772).

O que avulta é a tese da insuficiência da religião natural e da consequente necessidade de uma religião revelada, pelo que a perfeição e a felicidade humanas se não podem circunscrever a um estrito naturalismo de base imanentista, considerando no entanto que a religião natural e os argumentos de base racional que a sustentavam era um importante factor de universalização da religião e da aproximação do homem a Deus. Nessa ligação do homem ao ser divino sustenta-se também uma vertente ética que a razão esclarece mas que a revelação aprofunda, confirmando e ampliando o conhecimento dos atributos de Deus anteriormente inteligidos pela razão natural.

Cumpre ainda referir a importância assumida por este filósofo português na consolidação do movimento constitucional brasileiro, pois é dele a doutrina da representação política adoptada no Brasil durante a vigência liberal do Império.

No cerne desta doutrina, expressa no seu texto Manual do cidadão em um governo representativo (1834), está a tese de que o mandatário ou representante não representa tanto o seus constituintes como sobretudo os interesses dos seus constituintes. Representam-se interesses e não pessoas, sendo nesta base que cumpre fixar os direitos e deveres dos representantes ou mandatários, desenvolvendo a partir daí uma concepção "moderada" do liberalismo.

Obras
A relação completa das suas obras pode encontrar-se na revista Cadernos de Cultura 1, Lisboa, 1998. Por ser vastíssima, referimos aqui apenas as obras principais e com maior interesse filosófico.

Considerações sobre a gramática filosófica, Rio de Janeiro, 1808; Prelecções Philosophicas sobre a theorica do discurso e da linguagem, a estética, a diceosyna e a cosmologia, Rio de janeiro, 1813 (Nova edição, Lisboa, IN-CM, 1996, com prefácio de José Esteves Pereira); Essai sur la Psycologie comprenant la théorie du raisonnement et du langage, l'ontologie, lésthétique et la dicéosyne, Paris, 1826; Manual do cidadão em um governo representativo ou princípios de direito constitucional, administrativo e das gentes, Paris, 1834; Noções Elementares de Philosophia Geral e Aplicada às Sciências Morais e Políticas, Paris 1839; Teodiceia ou Tratado Elementar da Religião Natural e da Religião Revelada, 1845.

Bibliografia
Lúcio Craveiro da Silva, Silvestre Pinheiro Ferreira - Significado da sua obra filosófica, em Ensaios de Filosofia e Cultura Portuguesa, Braga, 1994, pp. 191-198; João Cruz Costa, Contribuição à História das Ideias no Brasil, Rio de janeiro, 1956; Maria Luisa Rangel Coelho, A Filosofia de Silvestre Pinheiro Ferreira, Braga, 1958; Antonio Paim, Silvestre Pinheiro Ferreira e a evolução do pensamento brasileiro no século XIX» em Revista Brasileira de Filosofia, nº 76, Out.-Dez., 1969; Maria Beatriz Nizza da Silva, «A Filosofia de Silvestre Pinheiro Ferreira», em Revista Brasileira de Filosofia, nº 76, Out-Dez., 1969; José Esteves Pereira, Silvestre Pinheiro Ferreira - O seu pensamento político, Coimbra, 1974; Armando Marques da Silva, A filosofia política de Silvestre Pinheiro Ferreira, Rio de Janeiro, 1977; Maria Luisa Couto Soares, «A linguagem como método nas Prelecções Filosóficas de Silvestre Pinheiro Ferreira» em Cultura-História e Filosofia, Lisboa, 1984 (separata).

Pedro Calafate


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