Livro das Linhagens
Séc.XIV

Comentário de Manuel Rodrigues Lapa (1960,3ªed.). Crestomatia Arcaica. Lisboa: Textos Literários. pp.49-54

(Nota: o til é desenvolvido como n.)


LIVRO DAS LINHAGENS
PRÓLOGO

Texto

Em nome de Deus, que he fonte e padre d’amor, e por que este amor nom sofre nehuuna cousa de mall, porem (
1) em servi-llo de coraçom he carreyra reall, e nehuun melhor serviço nom (2) pode o homem fazer que amá-lo de todo seu sem (3) e seu proximo como ssi meesmo, por que este (4) preçepto (5) que Deus deu a Moysés na Vedra (6) Ley; porem eu, comde Dom Pedro, filho do muy nobre Rey Dom Denis, ouve de catar (7) por gram trabalho por muitas terras escripturas que fallavam dos linhageens (8). E veemdo as escripturas com grande estudo e em como fallavam doutros gramdes fectos, compuge (9) este livro por gaanhar o seu amor e por meter amor e amizade antre os nobres fidallgos da Espanha, e como quer que (10) antre elles deve aver amizade, segundo seu ordinamento antiigo, em damdo-se fé pera sse nom fazerem mall huuns aos outros, a meos (11) de torvarem (12) a este amor e amizade per desfiarem-sse (13).

Esto diz Aristótilles: que sse homeens ouvessem antre ssy amizade verdadeira, nom averiam mester reys nem justiças, ca amizade os faria viver seguramente eno serviço de Deus. E a todollos homeens, rricos e pobres, compre (
14) amizade. E aos que som meninos ham mester quem os crii e emssine; e sse ssom mançebos ham mester quem nos comselhe, pera fazer sas cousas seguramente; e sse forem velhos, ham mester que lhes acorram (15) aos seus desfalliçimentos (16). E os amigos verdadeiros devem-sse guardar em sas pallavras de dizer cousa per que seus amigos nom venham a fama (17) ou a mall, ca per hi se desataria a amizade. E nom se devem mover a crer de ligeiro (18) as cousas que lhes delles digam de mall, e devem-sse guardar segredos e nom devem retraer (19) as obras que sse fezerom.

E por que nenhuuna amizade nom pode seer tam pura, segumdo natura, come (20) daquelles que desçemdem de huun sangue, por que estes movem-sse mais de ligeiro aas cousas por omde sse mantem, ouve de declarar este Livro per titollos e per allegaçoões, que cada huun fidallgo de ligeiro esto podesse saber, e esta amizade fosse descuberta e nom se perdesse amtre aquelles que a deviam aver. E o que me a esto moveo forom sete cousas:

A primeira, pera sse comprir e guardar este preçepto de que primeiro fallamos.

A segunda, he por saberem estes fidallgos de quaes desçenderam de padre a filho e das linhas travessas.

A terçeyra, por seerem de huun coraçom de averem de seguir os seus emmiigos, que som em estroïmento (21) da fe de Jesu Christo, ca pois elles veem de huun linhagem e sejam no quarto ou no quimto graao ou dalli açima, nom devem poer defferemça amtre ssy; e mais que os que som chegados come primos e terçeiros, ca mais nobre cousa he e mais samta amar o homem a seu paremte alomgado per divido (22), se boõ he, que amar ao mais chegado, se falleçudo (23) he. E os homeens que nom som de boo conheçer, nom fazem comta do linhagem que ajam, senam d’irmaãos e primos cõirmaãos e segundos e terçeiros; e dos quartos açima nom fazem comta. Estes taaes erram a Deus e a ssy, ca o que tem paremte no quimto ou sexto graao ou dalli açima, se he de gram poder, deve-o servir, por que vem de seu samgue; e sse he seu iguall, deve-o d’ajudar; e sse he mais pequeno que ssy, deve-lhe fazer bem, e todos devem seer de huun coraçom (24).

A quarta, por saberem os nomes daquelles domde veem e alguunas bomdades (25) que em elles ouve.

A quimta, por os Reys averem de conheçer aos vivos com merçees, por os mereçimentos e trabalhos e gramdes lazeiras (26) que rreceberom os seus avoos em sse guaanhar esta terra da Espanha per elles.

A sexta, pera saberem como podem casar sem peccado, segundo os sacramentos da Samta Egreja (27).

A septima, pera saberem de quaaes moesteiros som naturaaes (28) e bemfeitores.

E por esta materea seer mais crara (29) e os nobres fidallgos saberem gram parte dos linhageens dos Reys e emperadores e dos feytos em breve que forom e passarom nas outras terras, do começo do mundo, hu os seus avoos forom a demamdar suas aventuyras, por que elles gaanharom nome e os que delles deçenderom, por alguunas nobrezas que aló (30) fezerom, fallaremos primeiro do linhagem dos homeens e dos Reys de Jerusalem, des Adam atá a naçença de Jesu Christo; e das comquistas que fezerom os Reis de Syria e el-Rey Faraoo e Nabucodonosor em Jerusalem. Des y fallaremos dos Reys da Troya e dos Reys de Roma e emperadores e dos Reys da Gram Bretanha, que ora se chama Ingraterra.

Portugaliae Monumenta Historica –“Scriptores”, pp. 230-231.


Comentário

É este o prólogo do Nobiliário do Conde D. Pedro, filho de D. Denis. Foi dos livros mais lidos e consultados de toda a Espanha, sobretudo na Idade Média. Pretendeu ser uma relação verídica das famílias desde o tempo da Reconquista. Tem, pois, no que contém de verdadeiro, um alto valor histórico e social. Estes registos genealógicos foram fei­tos entre nós logo nos primeiros tempos da monarquia, por razões que D. Pedro aponta no seu prefácio, e de entre as quais sobressaem estas: 1. A necessidade de evitar casamentos entre parentes chegados, o que a Igreja condenava; só por meio de uma relação completa das famílias e sua descendência se poderiam determinar os graus de parentesco. 2. O esclarecimento de todos aqueles que tinham direitos sobre os mos­teiros, matéria muito litigiosa, pois que só os descendentes legítimos dos fundadores de um mosteiro poderiam alegar esse direito, conhecido pelo nome de “direito de padroado”. 3. A obrigação moral de os parentes se amarem uns aos outros e de terem presente a lição heróica dos antepassados na luta contra o mouro.

A sintaxe do trecho nem sempre é clara; é possível que ande estropiado.


(1). Por isso.

(2). Note-se o pleonasmo da frase negativa, próprio da língua arcaica. Hoje diremos: “nenhum melhor serviço pode o homem fazer”.

(3). Com todo o seu sentido, com todas as veras do seu coração.

(4). Não é o pronome demonstrativo, mas uma forma arcaica do verbo seer, correspondente ao EST latino. Leia-se com vogal aberta: éste. É evidentemente a forma primitiva; é deveu-se à analogia com os outros verbos. Se se dizia amas - ama, deveria dizer-se és - é.

(5). Grafia alatinada. Deveria ler-se preceito.

(6). Velho Testamento. Vedra vem do lat. VETERA. Veja-se ainda hoje Torres Vedras - Torres Novas.

(7). Procurar.

(8). D. Pedro afiança-nos que teve de consultar muitos documentos para compor o Nobiliário.

(9). Compus. D. Pedro não seria mais que o orientador geral da obra, que aliás já estava começada havia muito tempo.

(10). Ainda que.

(11). A menos de. A síncope do n medial em MINUS é regular. A reposição do n dever-se-ia à confusão com meos < MEDIOS.

(12). Perturbarem, prejudicarem. No ms. lê-se tornarem.

(13). Por desafiarem-se, com desafios.

(14). Cumpre.

(15). Socorram, ajudem.

(16). Fraquezas.

(17). Não venham a ser mal reputados.

(
18). Facilmente.

(
19). Contar, narrar.

(
20). Como.

(
21). Destruição. O prefixo es- substitui muitas vezes, na língua arcaica, o actual des: espedir, esterrar, etc.

(
22). Afastado.

(
23). Falto de virtudes. Faleçudo é o particípio regular de falecer.

(
24). Devem estar unidos por afeição.

(
25). Feitos de valor, virtudes.

(
26). Atribulações, canseiras.

(
27). Segundo o direito canónico, parentes até ao sétimo grau não podiam casar-se sem dispensação.

(
28). “Ser natural” dum mosteiro era o mesmo que exercer sobre ele o direito de padroado.

(
29). Clara. É o produto de uma assimilação.

(
30). Lá.