Unidade e diversidade da língua portuguesa

Celso Cunha defende flexibilidade normativa: 

No particular (...), o nosso pensamento coincide com o que há tempos externou Diego Catalán Menéndez-Pidal com relação à unidade superior da língua espanhola: 

«A unidade da língua não exige a imposição de uma norma única. Longe de favorecer uma política idiomática que propugne o ensino de uma ortologia rígida e artificiosa em todo o âmbito do espanhol, 

escreve ele,julgo que se deve reconhecer como característica essencial da língua espanhola sua enorme liberdade normativa.» 

E acrescenta: 

«poder-se-ia chegar ao reconhecimento de uma básica diversidade de normas linguísticas dentro da língua espanhola, não só no campo léxico e no campo fonético, mas também no sintático. Esse liberalismo normativo livraria grandes setores da população hispano-falante da inútil e deformante carga provocada pela aprendizagem na própria língua materna de todo um conjunto de “normas” estranhas completamente ao seu saber linguístico prévio. O ensino do idioma, concebido então como científica reflexão sobre um sistema e uma norma cujo conhecimento pré-científico se possui de antemão, conseguiria do falante comum uma correção linguística e um domínio das possibilidades expressivas da língua, inalcançáveis presentemente em regiões com parcial diglossia. Ao mesmo tempo, a língua literária, firmemente assentada em cada caso sobre uma estrutura normativa sentida como própria, despojar-se-ia de todo lastro inoperante, ganhando em flexibilidade e naturalidade. Tal variabilidade normativa, convenientemente codificada, longe de atentar contra a unidade do idioma, contribuiria para estabelecer uma maior intercompreensão entre as diversas modalidades do espanhol hoje em uso.» [El español de Canarias, Presente y futuro de la lengua española, I, Madrid, 1964, 228-249]

Este liberalismo normativo, que já começa a ser a aplicado em Portugal e, particularmente, no Brasil, pode e deve estender-se ao ensino do português nas novas repúblicas africanas, que o têm como segunda língua, mas uma segunda línmgua muito especial, porque durante séculos foi imposta na escola como se fosse a língua materna dessas nações.

[Celso Cunha, Em busca de uma norma objetiva, A questão da norma culta brasileira, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1985, 56-57]


Celso Cunha e as “variantes nacionais”

O próprio status da modalidade linguística de que nos servimos não está claramente definido, ou melhor, as conceituações propostas se fundam em razões extra-linguísticas. de regra eivadas de preconceitos historicistas ou nacionalistas. Daí as denominações variadas, que vão desde as jacobinas (do tipo língua brasileira) às subservientes (como dialeto brasileiro). Isso sem falar nas neutras, anódinas (a exemplo de língua  ou  idioma nacional), que mais de uma vez têm valido para acalmar zelos patrióticos, mas que, em verdade, deixam a língua inominada, pois não há país soberano que não possua o seu idioma nacional.

Como classificar o português do Brasil? E qual a metodologia de que nos devemos servir para descrevê-lo e explicá-lo?

Duas questões prévias e fundamentais, e sobre elas nos permitimos tecer breves considerações, resumindo em alguns casos observações anteriores.

Quando, em fins do século passado, o sábio filólogo português José Leite de Vasconcelos chamou dialeto brasileiro à modalidade que o português assumiu na América, orientou-se pelo parentesco historicamente condicionado entre o português básico, originário, e suas formas ultramarinas. Numa época em que a ciência só se interessava pelos fatos linguísticos em sua história, a classificação genética de Leite de Vasconcelos justificava-se plenamente.

Hoje, porém, com os progressos da dialectologia hispânica, o emprego do termo dialeto para designar o espanhol e o português americano em seu estado atual é não só perturbador, mas carece de apoio científico. Numa contrapartida nacionalista, poderíamos ser tentados - e alguns já o foram - a considerar também dialeto  à modalidade européia em seu conjunto, o que, como pondera Manuel Alvar, é um contra-senso, e implica a confusão das noções de língua e dialeto, funcionalmente distintas. [Manuel Alvar, Hacia los conceptos de lengua, dialecto y hablas. Nueva revista de filologia hispánica, XV, México-Austin, 1961, 51-60, especialmente 52-53]

Em primeiro lugar (e isto não sofre dúvidas), o termo dialeto evoca a “idéia de dependência (mais unilateral que recíproca) entre o dialeto, modalidade linguística tida como inferior. e o idioma nacional, concebido sempre como a síntese superior”. [G.V. Stepanov, Algunas cuestiones metodológicas del español americano, Actele celui de al XII-lea Congres International de Linguistica si Filologie Romanica, II, Bucarest, 1971, 1166].

Ora, quanto ao português e ao espanhol, ninguém mais contesta, “à bon droit”, a existência, em cada caso, de uma comunidade linguística ibero-americana. Também não se pode negar que as modalidades americanas do português e do espanhol, que forjam e continuam forjando suas próprias normas, inclusive no campo da expressão literária, devem qualificar-se como objetos sociolinguísticos especiais, em certo sentido autônomos, que coexistem nos limites da referida comunidade linguística, sólida, mas não estática, antes de acentuado dinamismo evolutivo.

A esse novo objeto sociolinguístico - subsistema de um arqui-sistema - Stepanov dá o nome de variante nacional.

Para ele,

«a diferença básica do valor metodológico entre o dialeto e a variante nacional consiste em distintos modos de funcionamento social: o primeiro (o dialeto) é utilizável só por uma parte da comunidade humana no seio de uma nação: a segunda (a variante) é um instrumento usado pela nação inteira.»

[E acrescenta:

A variante caracteriza-se por uma estruturação mais complicada que o dialeto tradicional: 1) pluralismo de normas diastráticas, entre as quais a forma superior (que é o falar culto informal) se opõe às diferentes modalidades incultas (dialetais, semidialetais, rurais, populares, etc.); 2) representa um subsistema estilístico funcional que não coincide com o de outras variantes nem com o sistema literário espanhol. Estas peculiaridades estruturais da variante são próprias da linguagem falada, mas podem refletir-se também na linguagem escrita de cada área nacional. (Ibidem)]

Sob este aspecto todas as variantes são paritárias, e as peculiaridades da variante peninsular podem também qualificar-se como “desvios” (iberismos) em comparação com particularidades linguísticas americanas (americanismos).

Acontece, porém - e são ainda palavras de Stepanov -, que o prestígio da protovariante peninsular condiciona uma situação especial entre as variantes paritárias e leva ao dualismo das normas utilizáveis e à realização assimétrica destas na variante americana.

Daí a vacilação permanente da língua culta do Brasil, a dificultar padrões para o ensino, mesmo depois que certas atitudes radicais dos escritores modernistas conseguiram, em alguns casos, diminuir o vácuo enorme que separava a expressão falada da escrita.

Essa interferência, historicamente explicável, ainda hoje consentida - e por muitos gramáticos até ardentemente desejada -, não é, como se costuma afirmar, uma riqueza idiomática, pelo acréscimo de opções estilísticas. Ao contrário, não tendo raízes na língua viva, torna-se uma possibilidade de escolha irreal, um claro empecilho à expressão habitual do brasileiro a perder-se nas flutuações diassistemáticas.

Sirva de exemplo - entre muitos que poderíamos aqui aduzir - o chamado problema da colocação dos pronomes átonos na frase, e a forma inaceitável por que tem sido, em geral, solucionado por nossos gramáticos.

É facto sabido que a colocação dos pronomes átonos no Brasil difere apreciavelmente da atual colocação portuguesa e encontra, em alguns casos, similar na língua medieval e clássica.

Em Portugal, esses pronomes se tornaram extremamente átonos, em virtude do relaxamento e ensurdecimento de sua vogal. Já no Brasil, embora os chamemos átonos, são eles, em verdade, semitônicos. E essa maior nitidez de pronúncia, aliada a particularidades de entoações e a outros fatores (de ordem lógica, psicológica, estética, histórica, etc.), possibilita-lhes uma grande mobilidade de posição na frase, que contrasta com a colocação mais rígida que têm no português europeu.

Infelizmente, certos gramáticos nossos e grande parte dos professores da língua, esquecidos de que esta variabilidade posicional, por ser em tudo legítima, representa uma inestimável riqueza idiomática, preconizam, no particular, a obediência cega às atuais normas portuguesas, sendo mesmo inflexíveis no exigirem o cumprimento de algumas delas, que violentam duramente a realidade linguística brasileira e que só podem ser seguidas na língua escrita, ou numa elocução altamente formalizada.

Esta é, a nosso ver, a primeira distinção que as duas variantes nacionais da língua portuguesa apresentam em sua forma culta: a vigência de uma só norma em Portugal; no Brasil, a ocorrência de dualidade ou de assimetria de normas, com predominância absoluta da norma portuguesa no campo da sintaxe, o que dá a aparência de maior coesão do que a real entre as duas modalidades idiomáticas, principalmente na língua escrita.

É a história que vai explicar-nos esta relativa unidade da língua culta de Portugal e do Brasil e as sensíveis, por vezes profundas, diferenças da língua popular em áreas dos dois países.

[Celso Cunha, Política e cultura do idioma, Língua, nação e alienação, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981, 15-18]


Sílvio Elia: Lusitânia

A exemplo do sentido que dou à palavra România no mundo neolatino, vou chamar Lusitânia ao espaço geolinguístico ocupado pela língua portuguesa, no conjunto de sua unidade e variedades.

Esse será o espaço próprio da lusofonia: os seus usuários serão os lusofalantes. Como “estágio atual da língua portuguesa no mundo”, considerarei a situação da Lusitânia após a Segunda Guerra Mundial.

Nessa perspectiva, vejo cinco faces na Lusitânia atual, que assim denominarei: Lusitânia Antiga, Lusitânia Nova, Lusitânia Novíssima, Lusitânia Perdida e Lusitânia Dispersa.

A Lusitânia Antiga compreende Portugal, Madeira e Açores.

A Lusitânia Nova é o Brasil.

A Lusitânia Novíssima abrange as cinco nações africanas constituídas em consequência do processo dito de “descolonização” e adotaram o português como língua oficial: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.

Lusitânia Perdida são as regiões da Ásia ou da Oceania onde já não há esperança de sobreviência para a língua portuguesa.

Finalmente, Lusitânia Dispersa são as comunidades de fala portuguesa espalhadas pelo mundo não lusófono, em consequência do afluxo de correntes imigratórias.

[Sílvio Elia, A língua portuguesa no mundo, São Paulo, Ática, 1989, 16-17]


Martin Harris

Portuguese in Brazil, influenced by the diverse origins of both the immigrants and the administrators sent from Lisbon, rapidly developed norms of its own, particularly in the more popular registers. The overall position is that while the official and literary standards on both sides of the Atlantic do vary, not least because of the changes which took place in metropolitan but not Brazilian Portuguese from the seventeenth century onwards, apparently as part of a process of fairly conscious linguistic distancing from Castilian, ease of communication ensures that this variation is kept within limits; no such constraints affect common speech, however, in which divergences at all linguistic levels can readily be perceived. Again as elsewhere, there have been attempts to demonstrate that the divergences between Brazilian Portuguese and that of Portugal are due to the influence either of Tupi and/or of the Portuguese-based creole which developed subsequent to the importation of black slaves; but whereas as usual no influences other than on the lexicon have been established to general satisfaction in respect of the standard language, the widespread simplification of suffixed morphology in particular in spoken Brazilian Portuguese is strongly reminiscent of a typical result of the process of creolisation.

[Martin Harris, The romance languages, The romance languages, London, Croom Helm, 1988, 10]


Stephen Parkinson

Portuguese, like English, has spread too far and wide to be described solely in terms of its European forms. The polarisation of European Portuguese varieties (abbreviated EP) and Brazilian Portuguese varieties (BP), and the relative decline in the cultural and economic position of Portugal are such that the Brazilian standard must be given equal status with the European.

The processes of convergence and divergence inside the Portuguese speaking world are still working themselves out. While European and Brazilian varieties are drawing closer together, partly through the realisation that Brazilian norms need not be opposed to Portuguese ones, partly through the influence of Brazilian television on Portugal, the former Portuguese colonies in Africa are looking for linguistic independence in the recognition of local standards. Portuguese can nevertheless claim ‘unity in diversity’ and as such can only increase in prominence as a major world language.

[Stephen Parkinson, Portuguese, The romance languages, London, Croom Helm, 1988, 131, 168]


Paul Teyssier

O português é a língua de Portugal e do Brasil, assim como dos diversos países da África e da Ásia que estiveram, até recentemente, sob administração portuguesa.

Existem diferenças entre o português de Portugal e o do Brasil. Essas diferenças abrangem todos os aspectos da língua, - fonética, vocabulário, morfologia, sintaxe. A própria ortografia não está ainda totalmente unificada. Assim, cada uma das duas formas que toma a língua escrita e falada deve ser considerada, no seu domínio geográfico próprio, como a única válida e «correcta». Há portanto duas normas do português, cada uma das quais forma um sistema autónomo e coerente. O estrangeiro que aprende a língua deverá pois optar, à partida, quer pela norma portuguesa, quer pela norma brasileira, e não sair daí. Mas quem quiser dominar verdadeiramente o português deverá, depois de estar seguro dos mecanismos próprios daquela das duas normas que tiver escolhido, adquirir um certo conhecimento das principais características da outra.

A norma linguística dos países lusófonos da África e da Ásia é a de Portugal.

[Paul Teyssier, Manual de Língua Portuguesa (Portugal – Brasil), Coimbra, Coimbra Editora, 1989, p. 15]


Mary Kato

Mas os resultados fornecem uma descrição bastante instigante do que vem mudando no português do Brasil, e o conjunto desses resultados é uma evidência de que o que ocorre não é um processo de ‘deterioração da gramática’, como pensam os escolarizados pela ótica da gramática prescritivista, mas uma reorganização interna coerente, uma mudança radical (paramétrica) na língua. Entre os aspectos mais extraordinários do PB estão o progressivo empobrecimento de sua morfologia flexional, o uso extensivo de categorias vazias cuja identificação não pode ser feita através da flexão; a falta de mobilidade, ou de movimentos longos, de elementos distintos, como verbos, pronomes interrogativos e clíticos. Por outro lado, mesmo quando a morfologia é capaz de identificar um pronome nulo, é o pronome lexical que se manifesta. O ‘sujeito’, seja como a categoria que concorda com o verbo, seja como tópico, pede realização fonológica. Apesar dessa aparente “desgramaticalização” do PB, o entendimento entre as pessoas é tão perfeito (ou imperfeito) como o que ocorre com falantes do italiano ou espanhol, línguas de complexa morfologia, cheia de movimentos de subida ou de inversão, ou com falantes de línguas como o inglês ou francês, com pouca morfologia flexional e com pouco uso de pronomes nulos.

A consciência dessas mudanças sistemáticas, que desembocam em uma língua distante de suas irmãs românicas, até mesmo do português de Portugal, é necessária para entender por que os estudantes escrevem como escrevem e por que a língua dos textos escolares, para as camadas que vêm de pais iletrados, pode parecer tão estranha quanto a de um texto do século XVIII para o lingüista iniciando-se em estudos dacrônicos. O Brasil apresenta assim um caso extremo de ‘diglossia’ entre a fala do aluno que entra para a escola e o padrão de escrita que ele deve adquirir.

[Mary A. Kato, Como, o que e por que escavar? Português Brasileiro. Uma viagem diacrônica, Ian Roberts, Mary A. Kato (orgs.), Campinas, Editora Unicamp, 1993, p. 19-20]


Fernando Tarallo

O principal objetivo deste capítulo é delinear algumas bases lingüísticas em torno das quais se centrava toda a discussão na virada do século, isto é: esboçar a emergência de uma gramática brasileira que, ao final do século XIX, mostrava claras diferenças estruturais em relação à gramática portuguesa. Tais diferenças, conforme bem o atestam os trabalhos de Galves tornaram-se ainda mais acentuadas neste final do século XX. Quatro grandes mudanças serão aqui apresentadas:

1. a re-organização do sistema pronominal que teve como conseqüências mais importantes a implementação de objetos nulos no sistema brasileiro de um lado, e sujeitos lexicais mais freqüentes de outro (...);

2. a mudança sintática ocorrida nas estratégias de relativização como conseqüência direta da mudança no sistema pronominal (...);

3. a re-organização dos padrões sentenciais básicos (...) e, diretamente relacionado a esta ordem SVO rígida em estado de emergência à época, o enrijecimento do princípio de adjacência na marcação do acusativo (...);

4. e, finalmente, uma quarta mudança no sistema brasileiro, diretamente ligada às três anteriores, será apresentada como evidência cabal de que os dois sistemas continuam a distanciar-se um do outro: os padrões sentenciais em perguntas diretas e indiretas (...)

Os quatro casos sintáticos apresentados na seção anterior devem ser tomados como evidência quantitativa de que mudanças dramáticas aconteceram na passagem do século XIX para o atual. Fica claro a partir do retrato oferecido que um novo sistema gramatical – chama-se de gramática brasileira ou de dialeto com sua própria configuração uma vez tratar-se de uma questão meramente ideológica – emergiu ao final do século XIX, estabelecendo uma nova gramática radicalmente diferente da modalidade lusitana (...)

[Fernando Tarallo, Diagnosticando uma gramática brasileira: o português d’aquém e d’além-mar ao final do século XIX, Português Brasileiro. Uma viagem diacrônica, Ian Roberts, Mary A. Kato (orgs.), Campinas, Editora Unicamp, 1993, p. 70]


Sousa da Silveira (entrevista  com Homero Senna)

Homero Senna:  Existe uma língua brasileira?

Sousa da Silveira:  Não. O que existe é a modalidade brasileira da língua portuguesa.

Homero Senna:  Mas não há probabilidade de que venha a formar-se, à semelhança do que aconteceu com as línguas românicas derivadas do latim?

Sousa da Silveira:  Não se pode comparar o processo de diferenciação do latim vulgar em línguas românicas com o de evolução da língua portuguesa no Brasil. Estamos diante de fenômenos diversos. O que se deu com as línguas românicas foi o seguinte: desaparecido o poder central no Império Romano do Ocidente, o latim vulgar dos territórios romanizados ficou sem o freio da antiga unidade e as forças diferenciadoras puderam, então, atuar livremente. Note que esse latim não se escrevia, era apenas falado, e que à centralização do poder sucedeu a descentralização, ocorrida sobretudo, com o aparecimento de vários reinos bárbaros, alguns de efêmera duração. O caso do Brasil é outro: desde os nossos primeiros tempos, a língua portuguesa aqui se ensinava e se escrevia; no século XVII o Padre Vieira pregava e escrevia, entre nós, sermões numa prosa das mais vigorosas e vernáculas; em português escreveram os nossos grandes épicos do século XVIII (Durão e Basílio da Gama), bem  como os poetas do grupo mineiro, um dos quais, Cláudio Manuel da Costa, teve declaradas clássicas, pela Academia de Lisboa, as suas obras. Os nossos poetas do romantismo também escreviam em bom idioma português, embora com alguma liberdade em relação às normas de além-mar. Acresce que hoje há outros elementos que favorecem a união e, portanto, a unidade linguística. Quem poderá prever qual será nesse sentido o papel da aviação, do rádio e da gravação da fala em disco? Eu, por mim, nada prevejo.

Homero Senna:  Que atitude devem a esse respeito adotar os escritores: trabalhar para que cada vez mais se acentue a diferença entre o português d'aquém e d'além mar, ou, ao contrário, procurar fazer com que o idioma se mantenha um só? Adiantará alguma coisa a posição que a propósito tomem os escritores?

Sousa da Silveira:  Penso que os escritores nossos devem cultivar a modalidade brasileira da língua portuguesa, sem procurarem afastar-nos, de propósito, da literatura portuguesa. Isso seria empobrecer-nos. Se já se tem dito que a grande força dos ingleses e norte-americanos se deve, em parte, a falarem a mesma língua, e se já se tem pensado num imperialismo espiritual por meio da difusão do idioma inglês pelo mundo, não é diminuir consideravelmente a nossa capacidade de resistência o separar-nos de Portugal? E não será um desatino esforçarmo-nos para que se deixe de ser também nossa a riquíssima literatura portuguesa e para que se nos torne arcaica a apreciável literatura que já temos?

[citado por F. Tarallo, Diagnosticando uma gramática brasileira: o português d’aquém e d’além-mar ao final do século XIX, Português Brasileiro. Uma viagem diacrônica, Ian Roberts, Mary A. Kato (orgs.), Campinas, Editora Unicamp, 1993, p. 77-78]


Mattoso Câmara:

As duas subnormas do portuguêsComo quer que seja, as discrepâncias de língua padrão entre Brasil e Portugal não devem ser explicadas por um suposto substrato tupi ou por uma suposta profunda influência africana, como se tem feito às vezes, resultam essencialmente de se achar a língua em dois territórios nacionais distintos e separados.

A partir do período clássico, em que o português se implantou no Brasil, cada país teve a sua evolução lingüística, nem sempre coincidente uma com a outra apesar das estreitas relações de vida social e cultura.

A fonologia brasileira, por exemplo, não apresenta, como sucede com a de Portugal a partir da fase clássica, os fenômenos de ritmo em allegro e forte insistência na sílaba tônica, que lá determinaram aspectos fonológicos importantes. A nossa fonologia resulta, também, não obstante, de uma evolução, desde o momento em que ela se estruturou no território brasileiro pelo contacto entre variados dialetos ultramarinos e a língua padrão.

Em referência ao léxico, os desencontros de significação, de renovação e conservação e de empréstimos são evidentemente consideráveis. Aí, há para contar no Brasil com um apreciável acervo de termos tupi e africanos, com que a língua comum se enriqueceu na época do bilingüismo português-tupi e do português crioulo dos escravos negros.

O problema do português popular e dialetal do Brasil é, naturalmente, outro. Nele podem ter atuado substratos indígenas, não necessariamente, tupi, e os falares africanos, na estrutura fonológica e gramatical. Também se verificaram, por outro lado, sobrevivências de traços portugueses arcaicos, que não se eliminaram de áreas isoladas ou laterais em relação às grandes correntes de comunicação da vida colonial. A imensa vastidão do território brasileiro e as modalidades de uma exploração intermitente e caprichosa já propiciavam, aliás, por si sós, uma complexa dialetação, que ainda está por estudar cabalmente.

[Joaquim Mattoso Câmara Jr., História e estrutura da língua portuguesa, Rio de Janeiro, Padrão, 1976, p. 30-31]


Eni Orlandi: variante nacional brasileira

Podemos referir aqui a questão da língua nacional no Brasil como um dos elementos de definição da identidade brasileira. Esta questão leva à consideração da variação (e por aí da diversidade) na medida em que ela pode caracterizar o Brasil como um país distinto de Portugal. Mas, por outro lado, isto se inscreve na constituição da unidade necessária (ou de uma nova unidade) nesse novo espaço que é o Brasil. Assim, os indigenismos, os africanismos, os provincianismos, os regionalismos aparecem como diferenças “domesticadas”, enquanto características do Brasil. Em outras palavras, todas as diversidades dos falares e a diversidade do conjunto das línguas indígenas brasileiras e das línguas indígenas brasileiras e das línguas africanas faladas no Brasil são referidas à unidade da língua nacional. Elas se organizam em relação a essa unidade. O que há de específico é que esta unidade não é referida ao português de Portugal mas ao do Brasil.

[Eni Orlandi, Ética e política lingüística, Línguas e instrumentos lingüísticos, 1, 1998, 10]
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