Notícia de Torto
Séc.XIII

Comentário de Ivo Castro (1991). Curso de História da Língua Portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta. pp.236-240


NOTÍCIA DE TORTO

(Leitura a partir do ms., confrontada com as leituras de Susana Pedro, Lindley Cintra e A.J. Costa. Normas principais: 1) as reconstituições editoriais são assinaladas entre [ ] e as formas canceladas entre < > ; 2) as abreviaturas são desenvolvidas em itálico; 3) o til é desenvolvido como n.)


Texto

1 D[e] noticia de torto que fecerun a laurencius fernandiz por plazo qve fece goncauo

2 ramiriz antre suos filios e lourenzo ferrnandiz quale podedes saber: e oue auer de erd[ade]

3 e d auer tanto quome uno de suos filios d aquanto podesen auer de bona de seuo pater; e fio li os seu

4 pater e sua mater. E depois fecerun plazo nouo e conuen uos a saber quale: in ille seem

5 taes firmamentos quales podedes saber. <E f...q> ramiro goncaluiz e goncaluo gonca[luiz e]

6 eluira goncaluiz forun fiadores de sua irmana que o[to]rgase aqu[e]le plazo come illos

7 Super isto plazo ar fe[ce]run suo plecto. e a maior aiuda que illos hic connocerun que les

8 acanoce<r>se laurenzo ferrnandiz sa irdade per plecto que a teuese o abate de sancto martino

9 que como uencesen o[ct]ra que asi les dese de ista o abade. E que nunqua illos lecxasen

10 daquela irdade d. sen seu mandato. Se a lexaren intregaren ille de octra que li plaza

11 E D auer que ouerun de seu pater nu[n]qua <le> li inde derun parte. Deu <a lauren....> dun goncalu

12 o a laurenco fernandiz e martin gonc[a]luiz xii <a> casaes por assas de sua auóó

13 E filarun li illos inde vi casales <quanto er> cun torto. E podedes saber como man

14 do Dun goncauo a sua morte. De xvi casales de ueracin que defructarun e que li

15 nunqua inde der[un] quinnon. E de vii e medio casaes antre coina e bastuzio unde li

16 nunqua derun quinion. E de tres in tefuosa unde li nu[n]qua ar der[un] nada. E iiºs in figeerec

17 do unnde nun<nada>qua li derun quinon. E iiºs in tamal unde li non ar derun quinon. E da sena

18 ra de coina unde li non ar derun quinon. E d uno casal de coina que leuarun inde iii anos

19 o frcuctu cun torto. E por istes tortos que li fecerun tem qua a seu plazo quebrantado

20 e qua li o deuen por sanar. E de pois ouerun seu mal e meteu o abade paz a[n]tre illes


21 inno carualio de laurecdo. E rogou o o abate tanto que beiso cun illes. E derun li

22 xviiii Morabitinos qui li filarun. E de pos iste plecto pre[n]derun li <on> o seruical otro

23 ome de sa casa. e troserun no xviiii dias per montes e fecerun les tan máá prison

24 per que leuarun deles quanto poderun auer. E de pois li desunro goncauo goncauiz

25 sa fili[a] pechena. E irmar[un] li xiii casales unde perdeu fructu. E isto

26 fui de pois que furun fijdos ant o abate. E de pois que furun infiados por iuizo de ilo

27 rec. E nunqua ille feze neu<n> mal por todo aqueste. E feze les <ta qua> agudas


28 quales aqui ouirecdes: Super sua aguda fez testiuigo cun goncauo cebolano

29 E super sa aiuda ar fui li a casa e filo li quanto que li agou e deu a illes. E super sa

30 aiuda oue testifigo cun petro gomez omezio que li custou maes <qua> Ka .c. Morabitinos

31 E super sa aiud[a] oue mal cun goncaluo gomez que li custou multo da auer

32 e muita perda. E in sa aiuda oue mal cun go[n]caluo suariz. E in sa aiuda

33 oue mal cun ramiro fernandiz que li custov muito auer muita perda.

34 E in sa aiuda fui iiªs fezes a coi[m]bra. E in sa aiuda dixe mul[tas] <f> uices

35

36 seu torto al rec. E super sa iud[a] mandoc lidar seus omes cun mar

37 <M> tin iohanes que quir[i]a desunrar sa irmana. E cun ille e cun sa casa

38 e cun seu pam e cun seu uino uencestes uosa erdade. E cun ille

39 existis de sua casa in ipso die que uola quitarun. E ille teue a uosa

40 rezon. E otras aiudas multas que < >fez. E plus li a custado

41 uosa aiuda qua li inde cae d erdade. E subre becio e super

42 fíjmento se ar quiserdes ouir as desonras que ante ihc furun

43 ar ouide as: Venerun a uila e fila[run] li o porco ante seus filios e com

44 erun si lo. Venerun alia uice er filarun otro ante illes

45 er comerun s o. Venerun in alia uice er filiarun una ansar ante

46 sa filia er comerun s a. In alia uice ar filiarun li o pane ante

47 suos filios. In alia uice ar ue[ne]run hic er filarun inde o uino

48 ante illos

// (verso)

49 Otra uice uenerun li filar ante seus filios quanto que li agarun in quele

50 casal. E furun li <o> u ueriar e prenderun inde o conlazo unde mamou [?]

51 re e gacarun no e getarun in tera polo cecar e le[ua]run delle quanto oue.

52 In alia uice ar furun a feracin e prenderun iiºs omes e gacarun nos e leuarun

53 deles quanto que ouerun. In otra fice ar prenderun otros iiºs a se[u] irmano pelagio

54 fernandiz e iagarun nos. In otra ue[ne]run a [?]ge [?]tros e leuarun s o [?]

55 ante pelagio fernandiz


35 e ora in ista tregua furun a ueracin amazarun li os omes erma[run] li x casaes


Notas

Linha    4 seem] segundo e entrelinhado
           10 que li plaza] li entrelinhado
           14 defructarun] de entrelinhado
           22 pre[n]derun li] li entrelinhado
           26 de pois] ois entrelinhado
           39 sua casa] casa entrelinhado
           45 in alia uice] alia entrelinhado
           52 leuarun] ua entrelinhado


Comentário

[A] Ocupemo-nos primeiro dos ditongos. Um inventário exaustivo de grafias, ainda que não de formas, revela a existência de cinco ditongos, todos decrescentes: [ew], [ow], [ej], [oj] e [uj].

O ditongo [ew] tem sempre a grafia <eu>:
<eu> : 3 seu, 11 deu, 20 meteu, 25 perdeu

O ditongo [ow] tem quatro grafias:
<ou> : 2 Lourenzo, 21 rogou
<ov> : 33 custov
<oc> : 10 octra, 36 mandoc
<o> : 3 fio, 11 ouerun, 13 mando, 21 beiso, 23 troserun, 49 otra

A grafia <ov> talvez se possa considerar mera variante paleográfica de <ou>, até porque ocorre uma única vez. Quanto a formas como ouerun, admite Cintra que «o u da grafia representa simuItaneamente a semi-vogal do ditongo e a consoante labio-dental v seguinte». Embora tais casos de cumulação de funções fonológicas em um grafema não sejam invulgares nos textos da época, parece escusado pôr essa hipótese neste caso, vista a abundância de exemplos de <o> para representar o ditongo.

O ditongo [ej] é representado por quatro grafias, a primeira das quais não é, curiosamente, a mais numerosa:
<ei> : 21 beiso
<ec> : 7 plecto, 9 lecxasen, 27 rec, 41 becio
<ee> : 16 Figeerecdo
<e> : 10 lexaren, 51 getarun

O ditongo [oj] tem três grafias:
<oi> : 20 de pois
<o> : 22 de pos
<ui> : 26 fui

A forma de pos presta-se a duas interpretações: ou corresponde á pronúncia não-ditongada [pOs], etimologicamente justificada (POST), ou corresponde a ditongo sem marcação da semivogal. O precedente de outros casos análogos toma a segunda a mais plausível. Quanto à grafia <ui>, inclinamo-nos a considerá-la variante de <oi>, com a oscilação <o/u> muito frequente, neste texto e em outros do séc. XIII.

Finalmente, o ditongo [uj] tem duas grafias:
<ui> : 32 muita
<uc> : 14 defructarun, 25 fructu

Não há, na Notícia de Torto, representantes dos restantes ditongos decrescentes do português antigo [aj], [aw] e [iw] . Dada a pequena dimensão do texto, isso não deve surpreender-nos.

Examinando em conjunto todas as grafias recolhidas constatamos as seguintes equivalências:
[w] : <u>, <c>, <Ø>, <v>
[j] : <i>, <c>, <Ø>, <e>

Ou seja: se descontarmos os casos singulares de <v> e de <e>, vemos que há um flagrante paralelismo na representação das duas semivogais. Além das correlações
[w] : <u>
[ j ] : <i>,

que têm tradições latinas, vemos que ambas as semivogais podem ser representadas por <c> ou por coisa nenhuma, <Ø>. O primeiro caso pode explicar-se ora por grafia etimológica, ora por hipercorrecção. O segundo não poderá corresponder a qualquer monotongação [ow> o] ou [ej > e], já que otra coexiste com octra, mando com mandoc, fio com rogou, lexaren com lecxasen. Além disso, tal monotongação não ocorre hoje ainda no dialecto minhoto central. Não será de ver, nesta omissão que afecta por igual as duas semivogais, alguma incerteza do escriba quanto à natureza desses fonemas e talvez mesmo quanto à sua distinção?


[B] Onde não há dúvida de que ele hesita constantemente quanto ao som que deve representar é no par [f/v]. Trata-se de uma «vacilação rara» para Cintra, que não conhece «outros exemplos deste indício de indistinção entre esta consoante surda e a sonora correspondente». Também Clarinda Maia não o conhece, registando uma única forma que com ele parece relacionada, aprofeytedes, em documento galego de Pontevedra, 1271. Na Notícia, os exemplos são os seguintes:

(Varzim) : 14 Ueracin, 35 Ueracin, 52 Feracin
(vez) : 34 fezes, 34 uices, 53 fice
(Tevosa) : 16 Tefuosa, ou seja Tefosa> Teuosa

É uma labiodental sonora [v] que o escriba ora representa por <u> equivalendo a <v>, ora por <f>. De facto, Varzim deriva de uma UILLA UERACINI, vez de UICE (<UIX), e a actual povoação Tebosa de um lat. TABULOSA, que deveria ter originado regularmente Tevosa, como aparece na Notícia e em todos os documentos medievais.

Em Tefuosa, o escriba ia cometer o erro de representar [v] por <f>, quando se deteve e acrescentou a grafia correcta. Nos outros exemplos, variou entre as duas grafias. Aparentemente, tinha dificuldade em reconhecer a labiodental sonora dessas palavras.

O fenómeno inverso também ocorre. Uma labiodental surda etimológica, 30 testifigo (<TESTIFICARE), pode ser escrita como 28 testiuigo. Fica assim claro que se trata não apenas da dificuldade em reconhecer a sonora, mas sim da dificuldade em distinguir entre si dois fonemas que são separados apenas pelo traço de sonoridade. Sinal de que esse traço não era marcado distintamente no dialecto local, induzindo em confusão um escriba vindo de outra região? Ou estaremos perante uma manifestação muito antiga, e sem continuação directa, do comportamento que, nos dialectos setentrionais, caracterizaria a sonora [v] ao evoluir para a fricativa bilabial [B]? Não deixa de intrigar que [v] se comporte sempre com instabilidade, embora de consequências diversas.


[C] Mas o som que o escriba mais claramente tem dificuldades em representar é a africada [tS]. Produto exclusivamente galego-português resultante de PL, CL, FL, não dispunha esta africada palatal surda de qualquer grafia latina ou tradicional e o escriba não conhecia as soluções que, na mesma época, eram ensaiadas pelos copistas do Testamento de Afonso II (Sancho e Sancio).

Por isso, limitou-se a tomar emprestadas as grafias que conhecia para a africada sonora correspondente [dZ], ou seja <g> e <i>:
<g> : 27 agudas, 51 getarun
<i> : 26 iuizo, 29 aiuda, 50 ueriar

Estamos aqui perante resultados de I- inicial latino (IUDICIU, IACTARE) e de DI (ADIUTARE), os quais convergiram para a africada palatal sonora [dZ], que mais tarde se simplificou para a fricativa [Z] . Mas no tempo da Notícia, como ficará claro, a africada ainda não se confundia com a fricativa. Por isso, não incluímos nesta colecção, ao contrário de Cintra , a forma 21 beiso, de BASIARE, cuja fricativa palatalizou por influência do iode sem ter passado por uma fase africada.

Também não contamos a forma 55 Pelagio, por ser um cultismo gráfico.

Um comentário especial merece a forma ueriar, "horto, pomar", do latim UIRIDIARIU. Sendo certo que o resultado mais habitual de DI + vogal é a predorsal [s], como em ARDEO > arço, AUDIO> ouço, a sua evolução para a africada sonora, neste caso, poderá explicar-se através da forma provençal vergier, a qual, aliás, está ainda mais próxima deste verjar que de outras formas medievais portuguesas, igualmente explicadas como provençalismos, vergel e vergeu.

Temos assim a africada [dZ] com duas grafias: <g> e <i>. São exactamente as mesmas que servem à africada surda [tS], e apenas elas (descontado o latinismo 40 plus, que aparece no Testamento como chus):
29 agou, 49 agarun, 51 gacarun
54 iagarun


Duas conclusões se tiram:

a) a africada surda [tS] não dispõe de grafias próprias, recorrendo o escriba não a uma, mas a todas as grafias da consoante mais próxima, o seu par sonoro [dZ]: este comportamento não tem paralelo na vasta documentação analisada por Clarinda Maia:

A africada pré-palatal surda /tS/ aparece, de uma maneira invariável, em todas as épocas e regiões estudadas, representada por ch;

b) isto prova a existência autónoma da africada sonora na língua da época ou no dialecto local: de facto, se se confundisse com a fricativa [Z], não haveria nenhum motivo para serem as suas grafias escoIhidas pelo escriba para representar [tS], pois então o som mais próximo deste seria a africada predorsal surda [ts], cujas grafias, na Notícia, são <c> e <z>. Este resultado é interessante quando posto em confronto com a opinião de Clarinda Maia:

pode ter-se como altamente provável que, no séc. XIII, já se tinha iniciado o processo de transformação da africada pré-palatal sonora em fricativa.